"O Filho do Pescador da Ilha do Cabo Quente" (conto)

O Filho do Pescador da Ilha do Cabo Quente
Um dia, Lora apareceu no alto da ladeira, protegendo, com certo charme, os olhos. Via-se que era náufraga de histórias escusas e escolhas obscenas. Talvez, de um cruzeiro marítimo que se aliviara de contrapesos... Típica personagem de folhetim, mantinha a pose. Arrastou o dedo elegante pelo queixo arredondado e observou a gota virar fumaça no ar: “O dia vai ser quente!”.
Agtos, o filho do pescador, tirou por um instante os olhos do mar. O que bastou para que, teimosamente, se fixassem na repentina sereia. Sentiu aquele calorão... Certamente passaria dos 45 graus, o dia. “Verão é assim, tal qual amor: começa pelando!...”, respondeu, analítico. – “Sei, sinto aqui por dentro...”, ela anuiu, desmilinguindo-se elegantemente.
            Agtos ofereceu uma aba de sombra, puxada da parede de sua casa de plástico. Olhou uma última vez na direção da Ilha de Búzios. O mar, chumbado, era de um azul enorme, o de sempre. Relanceou o olhar à sua volta. Crestava-se, quieta ao sol, a Região das Ilhas, a antiga Região dos Lagos... E, logo ali ao lado, brilhava a loura Lora... O dia seria quente!...

           O receptor estava ligado e mudo: o Controle de Navegação não tinha notícias. O barco de seu pai sumira dos radares. – “Aquele banheira não aguentaria uma tempestade de três dias...” Lora ouviu a história, ofereceu apoio: – “O que você quiser...” Arrepiou nele, coluna acima, um calafrio. Até bom, era tanto o calor!...
           E o velho, sumido... Não voltaria mais?... Jónson se tornara um dos últimos pescadores artesanais da Ilha do Cabo Quente. Gostava de sair com o barquinho, buscar (quando arrumava freguês, alguém com saudade de segurar) os peixes que escapassem às gigantescas usinas pesqueiras oceânicas. Velho teimoso!... Pena que não duram para sempre...
           Como que se desviando dos raios mortais do sol do meio-dia, Lora remexeu o corpo torneado e chegou à sombra. “Eu espero com você...” Agtos se emocionou, fez que tirava o suor dos olhos. “Tá demais essa luz! Entra...”, ofereceu-lhe a casa. De algum jeito, Lora ajudaria... “Ele volta...”, ela tentou animar. Agtos navegava no real: “Difícil escapar deste monstro de mar...”.
O velho Jónson não voltou... Lora, disponível, foi ficando... Agtos se acostumou com a troca. Também, com todo aquele calor!... 
 
Região das Ilhas (a antiga Região dos Lagos), RJ, em 2112

Aliás, a Ilha do Cabo Quente, nesse começo de 2112, merecia o novo nome. Por volta de 2090, o mar foi tomando o caminho do Peró, até que completou o cerco. Criou uma ilha, com a cidade, protegida, dentro. Agtos chegou a ver as ondas arrebentando as casas de luxo a pancadas e desfazendo ruas a enxurradas. Muito antes, nas violentas ressacas da década de 2075, desfizera-se a antiga lagoa de Araruama. As ondas levaram de início, da restinga de Massambaba, a parte próxima à atual Ilha do Arraial do Cabo. Depois, o restante. Em lugar das Dunas, um largo canal separava agora as duas novas ilhas. Contando a Lora, Agtos ainda zonzeava: “Pra onde terá ido toda essa areia? Para a África?...” Lora, entre outras maneiras de dar, dava de ombros... Desinteressava-se por esses assuntos antigos, gostava mesmo de coisas (e gente) novas. O clima continuava esquentando...
           Quente mesmo, a Ilha do Cabo Quente veio a ficar nos últimos dez, quinze anos, depois do sumiço do vento. “Mudou tudo!... Cadê as correntes marítimas?... O Sudoeste, frio, sumiu. O ar quente tomou conta!...”, as explicações doíam na cabeça desgrenhada do ignaro Agtos. Ela entendia: “Não fosse isso, seu pai voltaria...” Agtos confirmava: “Ele sabia tudo de mar!” Sabia... O mar, nos últimos anos, tinha mudado demais... A cidade, também.
Lá de cima, apertando os olhos, Agtos acompanhava a azáfama dos Guardiões do Dique. Contou a Lora, com filial orgulho, como Jónson trabalhou nas primeiras turmas, como ajudou a fazer o (depois inútil) dique do canal de Itajuru. Repentinamente assoreado, o canal foi aterrado e dividido em lotes. Foi quando decidiram construir o Grande Dique, para proteger a parte central da cidade. Que, para o outro lado, foi subindo morros, na direção das desaparecidas praias do Peró e das Conchas, ondulando seu mar de esfarrapadas casas de plástico reciclado. Uma parte do povo conseguiu lugar, gente que o mar expulsou de São Cristóvão, Palmeiras, Caiçara, Braga... Agtos se ajeitou no Morro da Antena, antigo Morro do Telégrafo. Os poderosos construíram mansões acima dos costões da ex-Praia Brava, ponto mais elevado da ilha. A maioria, assustada, partiu para as serras (os mais práticos...) ou para Minas (os mais esquentados...) ou para Brasília (os mais esotéricos...).
Luta árdua... Dali podia ver o esforço dos trabalhadores no afã de completar um acréscimo de 50cm nos 30km de diques da parte baixa. Faltava pouco, mas podia ser tarde demais: havia previsão de furacões pesados neste verão!... Era melhor acreditar... Tantas cidades invadidas por furacões, com o rompimento de diques, a começar por Nova Orleans, mais de cem anos atrás... Tantas outras, invadidas pela subida do mar, pelo avanço das águas... O desabamento de Veneza, a inundação de Amsterdam... Triste...
Forasteira, Lora ficou nos seus possíveis confortos. Agtos, convocado, apresentou-se aos Guardiões. Por um estirão de dias, encarou a tarefa de reforçar o primeiro molhe, à frente da mureta da antiga praia do Forte. Pedroz, amigo de seu pai, trazia notícias de Lora: – “Trata a todos muito bem. É muito dadivosa...”
O velho Pedroz guardara no preto da pele todas as dobras que os reflexos de luz conseguem construir em um rosto. Herdara de avô distante, dos tempos do sal (e de mais longe, de um sofrido povo escravizado), aquela vida trabalhosa, sempre a mando de alguém. Mas, mantinha o espírito quilombola!... Mais de 90 anos e ainda vinha, todo dia, animar os Guardiões: “Sem se resignar!... Vamos cavucar, gente!... Nasci e cresci na Rasa, hoje fundo de mar. Mas, conheci essa cidade feliz, cheia de turista. Ôxi, vi cada festa de Carnaval!... O mar subindo é que dificultou... Essas beiras de lagoa, as beiradas de praia, até os campos dos Tamoios: as ondas engoliram tudo!... Ah, mas, aguenta!... O dique da cidade aguenta, gente! Guenta!... Firme aí, Agtos!...”
Este, se abanando, especulava... “Difícil saber de onde veio tanta água...” Pedroz desconfiava: – “Ué, e não derreteram o polo Sul e o polo Norte?...” Agtos, como se não visse as escalavradas ruínas do Forte de São Mateus, devolvia uma gota de esperança: “Mas, a Antártida, não!... Lá ainda tem um bom pedaço de gelo...”
A esperança de ficar com Lora, essa, diminuía... As notícias eram cruéis (ou seriam mentirosas?...). Que passara a noite ajudando Floril, o engarrafador de água, a verter os seus líquidos... Que teria segurado (em público!) a arma de Mark, no plantão do bem provido policial... E agora andava com Emilitão, o bonitão do pedaço, fazendo-lhe cabeça (Agtos se confundia: seria também cabeleireira?...), tronco (fisioterapeuta?...) e membros (ou pu...silânime?...). Até que lhe disseram (aí, ele achou demais!...) que Lora seria destaque no Flor do Enrocamento, o bloco da peãozada do dique. Enquanto isso, ele, Agtos, que a resgatara de um duvidoso passado, passaria todo o Carnaval carregando pedra...
Ah, armou!... Não só o cimento da obra, antecipando-se, como também uma rápida e providencial escapulida carnavalesca. Repassou umas rações, prometeu umas tantas futuras cotas de água, e, afinal, convenceu Quedão, colega dos mais deprimidos, a trocar com ele a folga. Vestiu uma camisa que não era listrada, um capote desbotado, um chapéu de feltro branco, uma barba postiça de Papai Noel e saiu por aí... Fantasiado de Estátua de Sal, ninguém, nem mesmo Lora, o reconheceria...
Nessa época, o Carnaval da Ilha de Cabo Quente ainda acendia suas luzes. A maior delas, sempre, o holofote do sol... O céu, coadjuvante, costumava vir de Azul Profundo de dia e de Estrelas Faiscantes à noite. E, qualquer (e aonde quer) que fosse a crise, sempre baixava à terra, nessa época, uma turistada desorientada. Agtos precisava ver, com aqueles olhos que a terra (ou o mar...) haveriam de comer, em que banda, afinal, Lora tocava!... Ou, talvez (ah, esses masoquismos!...), quem, afinal, tocava na banda de Lora...
Entre astronautas e marcianos, tirolesas e trogloditas, beijo na boca e mão nisso ou naquilo, Agtos encontrou, na Assunção, a desmedida Lora. Quando a dada se derretia à frente de sua Estátua, Agtos retirou tudo (a fantasia...) e gritou: “Te peguei!”... Pois não é que Lora ia pegar também?... “Agtos! Você aqui?... Assim, todo enrijecido, quase um monumento?!...” Agtos dispensou apelos românticos e acusou: “Sei de tudo! Você abandonou o meu lar!...” Ela, reconhecendo o que se deu: “Exatamente porque não era o meu...”
Momento de tensão... Pausa dramática... Quase silêncio, não fosse Carnaval... Mas a orquestra sempre toma providência e, nesse instante, atacou: “Alalaô, ô, ô, ô, ô, ô, ô!... Mas, que calor, ô, ô, ô!...”
Os dois, ali, parados... Muito a dizer... Porém (ai, porém!..., que é aí, no porém, que dói...), do fundo do bloco uma voz ecoou: “Olha o furacão aí, gente!...” O quê?... Furacão?... No Carnaval?... “Oba!”, uns e outros chegaram a se animar... Realmente, lá estava, no alto do Morro da Guia, a bandeira rubro-negra: se não o símbolo, o aviso de um furacão!
Para Agtos e Lora (e para a cidade toda!...), hora de decisão! Tinham pouco tempo!... Ela rasgou a fantasia, resolveu contar tudo: “Não queria te trair! Mas, é que não resisto... Esses refrigerantes, esses chocolates, tudo encharcado de hormônios, me deixam louca...”
Agtos precisava voltar ao dique. O serviço estava incompleto, um furacão se aproximava... Talvez não se vissem mais... Decidiu ser magnânimo: “Lora, só dá tempo mesmo para isso: eu a perdoo!... Preciso voltar à minha trincheira!”
Lora sacou da manga rasgada de sua colombina sua última cartada: “Não, não! Venha comigo!... Descolei vaga de faxineira num transatlântico. Tem uma pra você, de carregador de piano. Ou de bagagens. Ou seja lá o que for...”
  As casuarinas farfalhavam, escandalosas, buscando no ar a água doce que sumira do solo. O sol já fechara suas persianas, abandonara o salão. O céu trocara a fantasia de Carnaval, uma pista do que vinha por aí, pela de Halloween...
Lora fez um último apelo (ela tinha esse lado dramático...): “Vamos embora! Não há mais lugar para nós aqui!” Agtos olhou à sua volta... Do bloco, só resíduos... Ela reforçou: “Vem! Daqui a pouco não haverá nem este lugar...”
Agtos indignou-se: “Este sempre foi o meu lugar!... Seja frio ou esteja quente, não me importa!... É só questão de regulagem!...” Lora olhou bem nos olhos dele, fez o seu muxoxo preferido e, com um sorriso cambaio, encandiu: – “Ag-tos, vo-cê não es-tá re-gu-lan-do bem...”
E, regulando bem o rebolado, foi-se, para nunca mais voltar.
Agtos (seja esse, ou não, um final feliz...) ficou frio em Cabo Quente. 
       


Este conto é uma atualização do texto vencedor do 
Concurso Literário “Teixeira e Souza”, 
da Prefeitura de Cabo Frio, RJ, em Março de 2007.
Antônio Gonçalves Teixeira e Souza, o homenageado, 
foi autor, entre outras obras literárias, 
de “O Filho do Pescador” (1843), 
considerado o primeiro romance brasileiro.

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