As tais gêmeas
Às vezes parece que Deus tem um senso de humor um bocado doentio.
Darques Lunelli, em “Dentro de nós mesmos”.
As gêmeas, duas lourinhas, nasceram em março de 2012, em Santa Rosa, hoje Capital Nacional dos Cultivos Transgênicos. Conviveram lindamente por quase um ano, até que, num domingo, os pais emocionados com um luminoso cantor ao pôr do sol da Praça Dez de Agosto, uma delas engatinhou uns metros a mais e foi devidamente recolhida por uma traficante de crianças, que, muito literariamente, se encontrava no local. Afinal, era um tipo de criança de muito boa cotação no mercado... Garotos davam ótimos zagueiros e garotas valiam ainda mais: podiam até ser miss... Muitas delas faziam sucesso internacional, as melhores modelos do mundo!...
Passa um tempinho e a menina vivia no Rio de Janeiro, adotada por uma família abastada e, por acaso, muito pouco curiosa... Falava-se que a menina teria vindo de uma pequena cidade do interior do próprio estado, Santa-Maria-qualquer-coisa, e que seria até parente distante da famosa atriz Dercy Gonçalves, e daí o estranho apelido que lhe deram, Derxi. Sua mais cuidadosa irmã, a que ficou em Santa Rosa também ganhou, curiosamente, um apelido estranho, Xurda, em vaga referência a uma artista local.
Por volta de 2025, vamos encontrar a bela Xurda muito bem criada, dezoito aninhos de idade, tendo estudado, ao estilo das tradições locais, em uma escola pública, onde aprendeu a passar, lavar e cozinhar, e trabalhado em várias colheitas e ordenhas. Por insistência dos vizinhos e apesar da timidez, chegou a se candidatar (ah, tão bonita!...) a Rainha dos Cultivos, a Soberana da Oktoberfest e a Princesa da Festa das Etnias: por falta de jeito, não teve sucesso.
A cidade, apesar dos cambiantes preços das commodities agrícolas, vinha de longa fase de prosperidade, sempre ampliando a área plantada para compensar a perda de produtividade, ainda que isto prejudicasse os criadores de gado, cada vez mais minimalistas. O que não era tão mal, que todos eram os mesmos, tanto pecuaristas quanto plantadores, ou compadres... Estudando em fins de semana, feriados e madrugadas, Xurda passou no vestibular de Biologia Transgênica da universidade estadual. Nos feriadões, ajudava a mãe na venda de lembrancinhas nas redondezas do Pórtico da Xuxa, monumento à ex-aposentada animadora de programas infantis, que agora apresentava um programa de variedades às segundas-feiras à noite no SBT, sempre com a audiência garantida dos seus antigos baixinhos.
Derxi, a tal que, por acaso ou
destino, foi brilhar no Rio de Janeiro, entrara (embora não comparecesse) em uma
faculdade particular de Comunicação, dessas muito bem pagas, que não passaria
mesmo em um vestibular decente... Estivera ocupadíssima, toda a adolescência,
viajando pelo mundo, mais turista do que modelo. Frequentou passarelas, por
umas Paris ou Caracas dessas, que os pais bancavam um estilista muito famoso e
este, por acaso, sempre a escalava para os desfiles de suas coleções. As
festas, festinhas e festanças também tiraram muito de sua concentração, que
depois de medianamente drogada era difícil estudar... Estrelou uns filmes
adultos e posou para revistas idem, o que, ao menos, fazia de muito mais que peito
aberto, e nem lhe passava pela cabeça que viesse a se arrepender um dia. Mantinha
bom plantel de namorados, com destaque para artistas e esportistas, atuais ou
antigos. Uma pessoa normal, das que, de vez em quando, aparecia na TVDHD...As tais gêmeas, jovens
Foi justamente pela TVDHD que Xurda conheceu a desaparecida (mas não esquecida) irmã, justo quando Derxi estreou seu programa vídeo-holográfico-musical. De imediato, mandou bilhetes, cartas, e-mails e vídeos. Oito anos depois, recebeu atenciosa resposta: alguém, dizendo-se advogado da famosa artista, falava algo sobre calúnias, ressarcimentos e outros valores... Insistente, Xurda investiu no contato até conseguir, finalmente, esclarecer o parentesco, já em 2036, em uma audiência no Fórum do Rio de Janeiro, para grande surpresa da irmã, que, por compreensível pudor dos pais de criação, desconhecia completamente a sua existência...
Xurda foi imediatamente incorporada, sem maiores burocracias trabalhistas (nada de carteira assinada, essas coisas, que afinal, tratava-se de uma irmã!...), ao staff da esfuziante e altamente diversificada empresária, com interesses nos melhores projetos de exploração das áreas remanescentes, indígenas ou não, da Amazônia, do Cerrado ou do Pantanal. Bióloga esforçada, Xurda fez relatórios caprichados, desenvolveu cultivos mais resistentes, vacinou animais (e gente) os mais diversos e acompanhou, tão bem quanto possível, a desenfreada diversificação de doenças tropicais ou importadas, que, cada vez mais, afetava as gentes e os bichos da terra. Isso, na década de 2040, muito antes da coisa piorar...
Derxi passou todo esse tempo em total dedicação às artes cênicas, apresentando-se em musicais cada vez mais feéricos, sempre descendo de altíssimas escadas e fazendo brilhar suas longilíneas e (consta...) apetitosas pernas de vedete. Vez ou outra, ancorava algum show de longa duração, desses dedicados à recolha de dinheiro para ampliar investimentos de fundos privados, que, lucrativos, garantiam uma confortável vida privada a seu administradores e diretores e patrocinavam cursinhos públicos de balé ou de violino para os guris mais descolados de determinados mocambos e favelas espalhados pelo país, sempre com a promessa de que dançariam ou tocariam, um dia, na Rússia ou na Alemanha (e uns iam mesmo, para conveniente exemplo geral). Em suma, Derxi estava sempre à frente de uma dessas beneméritas causas, parecia mesmo uma criança, esperança de faturar mais algum não lhe faltava...
Sendo gêmea, Xurda, útil e fiel colaboradora, para não confundir os interlocutores, ficava sempre na sombra, quieta, muda... De lá, aos poucos, foi percebendo que o mundo, apesar dos esforços empolgados da irmã, não melhorava o bastante... Voltava, sempre que podia, à sua terra natal. Procurava ser útil e até colaborou com a reconstrução da cidade depois do Grande Ciclone de 2052 e também após a Grande Tempestade de 2056. Ajudou ainda a reativar os velhos poços artesianos, que foram úteis na Grande Seca de 2060, e adiante. Estava por perto, inclusive, quando o Super Tornado de 2073 causou efeitos devastadores na Região das Missões, destruindo mais uma vez metade da cidade... Foi das primeiras a conhecer a nova imagem das ruínas de São Miguel das Missões, muito pouco turística, agora um mar de tijolos coloniais esparramados sobre a grama, as religiosas ruínas cuidadosamente desmontadas por um vento encapetado...
Tudo tem seu limite!... Vendo o mundo se desmanchar à sua volta, Xurda resolveu romper com a irmã. Incomodava-a ver Derxi não se ligar no meio ambiente... Nem parecia estar no meio do meio ambiente: sempre envolta em ar condicionado, sequer notava as mudanças climáticas!... As águas do mar subiam e invadiam o Rio de Janeiro, mas ela nem se incomodava: sua mansão, em posição altaneira, jamais seria atingida... Seus investimentos sempre davam muitos lucros, fossem quais fossem os estragos. Agora, tornara-se a grande dama do show business nacional. Quanto mais cataclismos houvesse, mais a convidariam para campanhas beneméritas e beneficentes. E nestas horas pagavam-lhe muito bem, uma grana sinistra...
Mais vinte (ou trinta, ou trinta e cinco...) anos se passaram e cada uma firme no seu lado. Xurda, vivendo nos subúrbios de Santa Rosa, agora conversava com duendes, gnomos e fadas, entre outros duvidosos interlocutores... Falava com qualquer um que a ajudasse a cuidar de sua querida cidade, de sua terra, cada vez mais desarranjada. As plantações continuavam esparramadas pelos campos, os bois engavetados nas baias das fazendas, as fabriquetas industriais nos quintais domésticos, agora envolvidos em um ar fantasmagórico, cena de antigo filme preto-e-branco do século XX, que vira na infância. Até a presença de chineses, novo grupo étnico a abrilhantar a Festa das Etnias (e complicar as relações humanas locais), não a surpreendia. Classificou-os logo entre as várias espécies de gnomos não conhecidas e achou razoável que comprassem largas extensões de terra das tradicionais famílias de arruinados plantadores locais. Que viessem, todos, da China e fizessem novas colônias na região!... Tinham todo o direito!... Aquela terra, a sua terra, não era mesmo uma terra de imigrantes, com exceção dos índios, há muito desaparecidos?...
Por outro lado, parecia mesmo que
o tempo não passava para Derxi... Atravessara, há muito, os oitenta, mas ainda
lhe restava coragem para mostrar os peitos ao mundo, encarapitada no alto de um
carro alegórico, em pleno Carnaval Virtual do Rio!... Se as mudanças
urbanísticas da cidade, após as grandes enchentes, permitissem um desfile
físico, como os de antigamente, certamente estaria lá, também de peito de fora,
ainda mais porque era, ela própria, o tema do enredo de uma das maiores
Faculdades de Samba da cidade!... Não estava nem aí!... Chutava o balde, a poça-d’água,
o Rio todo e chutaria até o mar, se este não estivesse tão genioso
ultimamente... Que lhe importava o mundo, se não tinha jeito mesmo?... Quando
vinham perturbar, tascava logo um palavrão dos mais escrachados e se divertia
muito com isso... Por esta razão era tão constantemente convidada para aturar gente
pobre, como jurada de um programa de calouros: sem sequer ouvir a cantoria,
dava logo uma nota ar-ra-sa-do-ra!...As tais gêmeas, centenárias
Assim, as duas gêmeas, tão distantes, chegaram aos cem anos, há pouco, em março de 2112. Com tantas próteses e químicas disponíveis no mercado, sem surpresas... Sim, mas, reconheçamos, gêmeas centenárias, ah, sempre deu, e sempre dará, altas mídias!... Que se alvoroçaram e tanto insistiram que, sem sair de seus confortos ou valores, acabaram aceitando um encontro virtual, quem aguenta a pressão da imprensa e dos publicitários?... Na prática, uma tela dupla, a cara delas em cada lado. Ao centro, no estúdio de São Paulo, a grande atriz e apresentadora árabe-americana Iby K. Marg.
Ficou claro que as divergências de quatro (ou cinco, seis, sete?...) décadas continuavam vivas nas memórias desgastadas de cada uma, até no estilo: Derxi falava palavrões cabeludos, Xurda conversava com um duende imaginário... Vinha capenga a conversa até que Iby K. Marg, para se livrar do problema, fez umas dessas perguntas que não merecem resposta: “sim, o que vocês diriam, sugeririam, proporiam ao mundo para resolver os graves problemas ambientais de que foram testemunhas, nesses cem compridos anos que viveram até hoje?”...
Para surpresa geral, Xurda se ligou!... Vagou o olhar, atenta, em todas as direções e, escolhendo qualquer uma delas, alteou a cabeça e perguntou:
- E você, Derxi, não se arrepende?... Não?...
Na outra tela, no outro lado, em outro tempo, uma outra velhusca cabeça se ergueu, um sorriso foi cortado repentinamente ao meio, um esgar pontuou um olhar para a câmara certa, aquela pela qual sua distante e dispensada irmã veria o seu melhor ângulo, e saiu do mais profundo do seu eu a resposta:
- Que se danem!... Vão pra...!...
Cortaram a tempo. Ficou a dúvida: terá sido um final, afinal, à altura do programa e, mais, do parentesco?...
Seja como for, foi um final. As duas estão ainda por aí, cada uma em seu canto ou palco, e espera-se que durem outros cem anos, o que já não é tão difícil hoje em dia.
Nós, e o país, e o mundo, faremos também o possível para durar...
O escritor Darques Lunelli (1964-2004), citado na epígrafe, nasceu em Cruz Alta, mas desenvolveu a carreira literária em Santa Rosa, ambas, importantes cidades do interior do Rio Grande do Sul.
Um conto que não é baseado em qualquer texto...
Em compensação, é todo referenciado em produções televisivas e/ou cinematográficas, com suas implicações sociais e econômicas, incluindo campanhas assistencialistas com a participação de figuras públicas, como, no gênero, atrizes, apresentadoras, modelos etc.
São referências tomadas pelo seu aspecto simbólico, representando padrões de comportamento relativamente comuns no Brasil, não correspondendo, necessariamente, a histórias ou atitudes individuais ou particulares.
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