"A Trama do Fim do Mapa" (conto)




A Trama do Fim do Mapa


Senhores, boa noite a todos.
Quero, antes de mais nada, esclarecer que os estampidos que ouviram há alguns minutos, não são nada não... Fui eu que dei uns tiros de festim, coisa comum, meio que usamos aqui para assustar uma matilha de lobos-guará. Cada vez mais esqueléticos, nem sei como sobrevivem... Insistem em invadir o campus para buscar restos de comida do bandejão... Mas, já foram, vamos começar...
Meus amigos, é uma honra encerrar este seminário!
Infelizmente, é dos poucos que nos restam... Creio mesmo que, para mim, Agbaldo Costa Tarana, depois de tantos anos de estudos, mais aprendiz do que mestre, este será o último...
Mas, não importa!... Façamos dele um ato de resistência, ainda que tardia. Que seja mais uma etapa da luta, que precisamos manter até o fim. Não se morre antes da hora!... E nossas instituições acadêmicas ainda não chegaram ao fim, estamos em uma universidade pública!
É... Com licença, só um instante... Preciso mudar de lugar, parece que há uma goteira neste ponto...
É a decadência, senhores... A coisa, aqui, é assim mesmo, não se assustem os que não são de universidades públicas. E nem está chovendo muito... Goteira já é hábito, nossos prédios não são mais assim tão bons...
Mas, intelectuais resilientes, que somos, ainda nos restam, de nossos poucos prazeres, ao menos, a Geografia e a Literatura... E os amigos!... Fico feliz de encontrá-los, todos vocês!... Antigamente, um escritor novato, entre modesto e realista, diria não ter mais que 17 leitores. Pois, senhores, eu os contei: são 17!... Fico feliz de que me restem 17 ouvintes...
Ei, estão gravando a minha fala?... Sim?... Ah, sei, é obrigatório, questão de segurança... Tem toda razão, menos mal... O que também não quer dizer mais nada... Pergunto aos senhores: será feita, algum dia, e alguém lerá, a transcrição desta fala, se ainda houver algum dia?... Ah, tomara que ainda me restem 17 leitores...
Bem, dizia eu... É justamente sobre a relação entre Geografia e Literatura que, tão bem quanto possível, lhes falarei, passeando por algumas das paisagens que nos oferece o país. Com tão grandiosos suportes, pretendo rememorar, um pouco, se posso tentar, o que temos vivido nesta terra, e os nossos mais profundos sentimentos sobre ela. Ou seja, dizer o que tanta falta nos faz: a verdade!... Simplesmente a verdade sobre o que nos levou a este ponto...
Aqui mesmo, Belo Horizonte, que era tão bela... Me digam: o que resta do horizonte?... Hoje, aqui, o horizonte não passa de uma superfície plana circundando a cidade!... Senhores, aqui havia montanhas!...
Está certo, sejamos realistas, tínhamos que exportar minérios... O dinheiro precisava chegar de algum lugar, da América, da China, tanto faz, como, aliás, tanto fez!... E, afinal, sejamos sensatos, perder montanhas não é o pior: basta acostumar a vista... 
O problema é que a perda do horizonte indica uma perda maior (que também aconteceu no Cerrado): a perda do lugar!... Sim, é exatamente assim que devemos conceituar a questão, nos termos clássicos da nossa querida disciplina, a Geografia. Porque, ora bolas, com toda certeza, garanto, o território está lá!... E abunda por toda parte o espaço, o Cerrado é o mundo: não há coisa mais vasta... E então, que dói?... Nos falta o lugar!
Um rato!... Senhores, por gentileza, levantem as pernas... Obrigado. Não se preocupem, é um rato conhecido nosso, chama-se Hermeto. Tem este corpanzão de jagunço, mas só faz barulho... Os senhores sabem, nas sociedades decadentes há ratos em todo lugar, são emissários do fim...
Porque, senhores, como todos também sabem, não há o lugar se não há quem o nomeie!... Sustenta uma de nossas principais linhas teóricas, com proficiência, que o ser humano, pelo seu conhecimento, é quem constrói o mundo. Nem vou lhes dizer “não há o lugar porque não há quem o habite” porque, nas circunstâncias, seria ousar em excesso... Tudo bem, reconheçamos, o Cerrado não é mais, mesmo, um bom lugar para morar.... Não há mais cidades, só seus fantasmas, desde os tempos dos grandes cultivos. E nem há mais cultivos, só resta um cerrado vazio...


 


Ora, senhores, trata-se de mera coincidência... O que posso lhes dizer, a bem da verdade, é que eu estava trabalhando neste tema, anos atrás, já na sua fase final, quando então tomei conhecimento desse material. Não tenho culpa, meus caros, se há uma longa prática no campo acadêmico, praticamente uma tradição, que nunca pratiquei, de copiar trabalhos alheios...
O fato é que o Cerrado, nos últimos 50 anos, não é mais o mesmo. E, no entanto, tinha seu valor. Foi uma área muito produtiva, chegou a ser chamado de “celeiro do mundo”, os senhores lembram... Um orgulho nacional, embora fosse praticamente desconhecido dos brasileiros, pelo tanto que se manteve isolado, sempre produzindo, para o mundo, riquezas, alimentos e combustíveis. Pois, o Cerrado mudou completamente, perdeu a sua importância... E não adianta procurar respostas precisas para o fenômeno... Não há mais quem as leve em conta!...
Sendo assim, melhor mesmo trabalhar com o sentimento!... Daí, a escolha deste livro, como referência para esta fala. Chama-se “Grandes Plantações: Verdejais” e o seu autor, Reinaudaz Ramas, como tantos outros, caiu no esquecimento depois que as Hordas se apossaram de praticamente tudo, inclusive das nossas preocupações... Medíocre como motorista, jornalista e fotógrafo, Ramas, um dia, se atribuiu o juízo do mundo e danou a escrever!... Produzia arquivos clandestinos desde os anos 2030, sim, mas transcendeu-se em letras na década de 2050, ao encontrar o Cerrado. Entrou e saiu dos plantios e das colheitas, mergulhou em sorgo, cevada e soja, atravessou mares de cana-de-etanol e de eucalipto, embarafustou por terras desmatadas e mal aradas e com isso, cada vez mais intoxicado de um fertilizante prazer, filmou, fotografou e escreveu sobre o Cerrado, até sair de lá com material bastante para fazer uma obra multidimensional, que editou e publicou em 2056, em edição artesanal, mas de alta qualidade.
Senhores, está tudo lá no seu livro!...
Pena que eu não tenha mais meu exemplar autografado... Acabei vendendo, confesso... Um momento de sufoco, compreendam, a aposentadoria há meses atrasada...
Aproveito para fazer um esclarecimento particular, mas necessário... Eu não tive, ao contrário do que publicaram, qualquer ligação afetiva com ele, e que os céus me caíam sobre a cabeça se eu estiver mentindo!...  É que Reinaudaz Ramas, às vezes, para confundir a crítica, assinava como Guinará Doradim, sugerindo ser algum tipo andrógino, impreciso, uma figura nebulosa... Daí, o surgimento destas fofocas... Admito: sim, sentíamos algum tipo de atração mútua. Realmente passamos muito tempo juntos, mas era uma relação apenas intelectual, talvez por conta do vigor de nossas obras...
Epa!... Que foi isso?... Nossa, que barulhão!... Ha, ha, ha, foi nada... Apenas um trovão!... É que a chuva virou tempestade... Não se assustem, nada a ver com o prédio...
Uma coisa é certa: era um empolgado!... Sabia ver, no tom pastel dos longos campos plantados, a límpida face verde de um Brasil dourado!... Não foi à toa que eu também fui empolgado por ele!... Sim, senhores, eu conheci o Cerrado naquela época... Era um verdadeiro paraíso produtivo!... E um paraíso generoso: não ficava um grão aqui, era tudo exportado!... Produtos puros... Que logo voltavam, e ainda melhores!... Tratados, beneficiados, repetindo o caminho de suas sementes, que recebíamos a cada ano de volta, tratadas, virilizadas, transgenizadas: o gênesis de uma nova safra, de novo dourada.
Sim, Reinaudaz Ramas era pura paixão... Ah, mas não era nada bobo!... Vibrava com o Cerrado, como um ramo de trigo ao vento, mas não se iludia... Observando as tranças das plantas, inseriu nas tramas do texto, lógico e premonitório, um rascunho do mapa do fim desta dádiva...
Sinais!... Mostrou os sinais... Sim, muitos sinais do futuro malogro do Cerrado transparecem nas intrigas de suas estórias... Um plantio fracassado aqui, um produto esquisito ali, uma família fugindo lá... Antecipou o que, afinal, pude comprovar: não é verdade que tenha havido uma súbita perda de qualidade do solo do Cerrado!
Não, isto é mentira!... A verdade, a verdade ninguém vê...
Epa!... Apagou tudo!... Tudo bem, não se assustem, apenas faltou luz... É normal, está relampejando muito... Raios!... Raios é que não faltam nesta terra, só espero que não nos partam... É a seca, o apagão... É, hidrelétrica já era!... E pensar que a obra da usina atômica de Poços de Caldas continua parada há mais de 30 anos, com tanto urânio naquele solo... Ah, voltou!    
A verdade, eu tenho que dizê-la... As sementes, a partir de certo ponto não eram mais as mesmas!... Deixaram de dar a produtividade que tínhamos na década de 2060, até aí... As corporações alimentícias insistem em dizer, até hoje, que elas têm as mesmas propriedades. Que até melhoraram, tornaram-se hiperultraovertransgênicas... Que, com elas, em se plantando, tudo dá, sério, e muito!... Que só depende do solo, dizem... E o incrível é que ninguém duvida!... Nossa fé sempre foi funda, nossas safras é que são rasas!... Nunca mais foram as mesmas... Fiz o diabo para tentar reverter o processo: estudos, pesquisas, promessas... Me empenhei ao máximo...
Ei, fecha esta janela!... Caramba, que vento!... Parecia até um redemoinho!... Que coisa!... Isso é coisa que aconteça?... Ah, obrigado, está bom assim. Bem, continuemos...
Então... Ora, enquanto acontecia este estranho fenômeno no Cerrado, ouvíamos notícias sobre a sintetização de algas... Após décadas de pesquisas, finalmente conseguiam produzir comida apetecível ao gosto humano. No Cerrado, sem acesso à tecnologia (e sem algas...), os senhores sabem, aconteceu a derrocada final do agronegócio brasileiro. Tentamos reagir, incrementamos os insumos, contratamos pessoas para os cuidados mais minuciosos, mas não adiantou: as sementes não desabrochavam!
É assunto de que não se fala, muita gente tem medo, é quase clandestino...
Ei, vocês dois, não saíam!... Já estão indo?...  O que está acontecendo?... Bem, vai quem quer...
Culpa desta maldita sintetização de algas em alimento!... Foi este ato criminoso das grandes corporações que levou à bancarrota a produção agrícola mundial. Deixou, em países extensos como o nosso, um grande “elefante branco” no campo... E, no que se produz a alteração de uma produção compacta, muda até a Geografia... Por isso é cada vez mais restrito o “mundo civilizado”, os que têm capital, armas, tecnologias: o núcleo fundamentalista dos EUA, nos Apalaches (o Meio-Oeste agrário também ficou inútil...), as casamatas centrais da Europa, o gelado núcleo duro russo e a China milenar expandida. O resto do mundo, nós inclusive, é só barbárie!
Alguns de vocês... E vejo pela cor dos cabelos... Para mim, são jovens!... Nenhum parece próximo dos 100, a que já cheguei. Um pouco amarrotado, concordo. E ainda me metendo a falar sobre questões cruciais em eventos acadêmicos vazios... Viciado nisto, viciado, eu reconheço...
Mas, de volta ao tema, alguns se lembrarão da Embrapa... Alguém aí se lembra da Embrapa?... Não, não, você não vale, meu caro! Você deve ser, depois de mim, o mais velho. Quanto, 90?... Tudo isto?... Hum, engana bem...
Ora, o fim da Embrapa aconteceu em 2032, há muito tempo, e também foi uma enganação... Consta que o governo desistiu de administrar a agricultura, reconheceu a primazia produtivista da iniciativa privada. Eu mesmo não dei importância à perda, e me arrependo: quem sabe não teríamos nossa própria fábrica de sementes?... Mas, acabaram com a Embrapa e, hoje, tenho certeza, e posso lhes dizer: foi vítima de sabotagem internacional!... Investigaram, denunciaram, mas não provaram nada... Pois eu garanto: estas empresas, as mesmas que fabricam sementes e que hoje investem em algas, elas fizeram o serviço.
Hem?... Rachadura?... Que rachadura?... No fundo da sala?... Nem reparei... Não, daqui não consigo ver... Deve estar aí há muito tempo, o prédio é antigo.
Vocês veem... O Cerrado original foi dado por extinto lá pela metade do século XXI. Sim, ainda que mantidos os trechos exemplares, mal cuidadas áreas de preservação oficiais... Pois sabem de uma curiosa consequência da decadência agroeconômica a que assistimos?... Estão de volta aquelas plantas retorcidas. Desaparecem as soluções geométricas das plantações!... Sim, o cerrado original está recuperando terreno. É um tal de aparecer embaúba, mulungu, gameleira, araticum-cagão, guatambu-de-sapo, assa-peixe, capitão-do-campo, maria-pobre, pororoca... Dá até para pegar umas frutinhas: pequi, araçá, mangaba, gravatá, lobeira, jatobá... Em suma, para ser sincero, e isso também dói: é a natureza estragando tudo que o ser humano fez...


Estalando?... Estalando nada!... É a trovoada, não se assuste!... Que mania!...
Senhores, que me ouviram com paciência até aqui, vou terminar esta peroração com mais uma reminiscência literária, se me permitem... Ou melhor, como já tratei deste tema inúmeras vezes nas últimas décadas, acho conveniente aproveitar para esclarecer uma dúvida, que é, de certa maneira, uma intriga contra mim...
Há realmente um livro, de meados do século XX, muito volumoso, cujo texto é incompreensível, mas muito prestigiado na sua época – talvez porque seu autor fosse um diplomata –, que também trata desta região, a que o autor dava o nome de Sertão. É tão antigo que ainda citava as veredas, áreas encharcadas, quando ainda havia água em abundância, locais de concentração dos buritis, uma espécie de palmeira já extinta. A obra foi a tentativa de um poliglota (quando ainda os havia, antes do mundo se comunicar em apenas duas línguas...) de fazer um romance multidisciplinar, quando ainda nem chamavam assim... Certamente, não teve a menor influência sobre o autor de “Grandes Plantações: Verdejais”, que faço questão de reverenciar aqui.
E, além disso, admito, é possível que alguns notem a semelhança desta minha palestra com um trabalho efetuado a mais de 100 anos atrás (antes de eu nascer!...) por um geógrafo, à época proeminente, que associava a Geografia de então, ainda pobre de conceitos, a esta obra literária antiga, supostamente importante, chamada “Grande Sertão: Veredas”. 
Ah, deixa estalar!... O teto, que estale à vontade!... Agora, ninguém me segura, vou levar a verdade até o fim!... Quem quiser, que saia!... Covardes!...
Infelizmente, coincidem estes trabalhos... Especialmente, na descrição de momentos de transição, de descaracterização, de perda da essência do Cerrado. O fim do mundo dos jagunços, o domínio das boiadas, a apropriação das terras pelos coronéis, na obra do século XX... O fim das grandes plantações, a exaustão da cornucópia de alimentos, na de meados do século XXI.
Nestas horas, reaparecem os oportunistas e os pessimistas que, mais uma vez, preveem o fim da Geografia... Ora, senhores, a Geografia vai durar todo o tempo do humano sobre a Terra!... Enquanto houver pessoas curiosas e aplicadas, a Geografia estará salva. Mas, quanto ao Cerrado...
Para o Cerrado, este ponto – lamento lhes dizer, senhores – é o fim do mapa... O fim!... Não há mais cidades nem cercas... Não mais Pirapora nem Cafundó!... Não existem mais!... Sumiram os locais!... Sumiram simplesmente porque não têm mais gente. Onde estão todos?... Abandonaram os campos, as plantações... Realmente, eram poucos por lá, as máquinas faziam o serviço... Mas, estes, ainda que poucos, onde estão?... Foram para as cidades. São as hordas que vagam entre nós à espera de miseráveis porções de algas...
E devo lhes dizer, secamente: não restam nem várzeas nem rios no Cerrado... Não mais Urucuia nem São Francisco!... Há apenas um vazio seco e árido, que nem deserto é... Nada que mereça classificação, que tenha lógica... É tudo um chapadão só, um grande abandono de restos de plantações, novos areais que são vorazes sorvedouros das poucas chuvas que chegam até lá... 
Senhores, para isto, ao menos, há de servir a Ciência. Se não para evitar que aconteça, ao menos para decretar o fim... As coisas, está certo, não tem fim... Elas se transformam, há muito disseram isto... Mas, para o homem, o humano, até o infinito tem fim...
Ei, o que é isso?... Um estrondo!... Esta viga!... Cuidado!... Aqui em cima, a viga!... Ai, socorro!... Ai!...
Ai, a viga... Ai, a vida... Ai...
O fim...


     Este conto tem por base estrutural (descolando-se, portanto, do precioso conteúdo) o capítulo “O espaço iluminado no tempo volteador – Conjecturas sobre o conteúdo geográfico no sertão de Guimarães Rosa”, do livro “O mapa e a trama – ensaios sobre o conteúdo geográfico em criações romanescas”, obra interessantíssima do geógrafo Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, lançado em 2002 pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, em que aborda ainda outros importantes autores brasileiros.
     De muito antes desta referência, evidentemente brilha, presente como pano de fundo e base geográfica, mas principalmente como estímulo literário, a profundíssima arte de João Guimarães Rosa, lembrado por sua obra máxima, “Grande Sertão: Veredas”.

 

 

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