"Memórias póstumas do Rio de Janeiro" (conto)

Memórias póstumas do Rio de Janeiro

 

Guina Araújo Ramos

 

À primeira onda a me engolir, dedico estas mareadas lamúrias.

 

Ao leitor

Há os que, bem sensatos, escrevem para 17 leitores, ou dez, ou cinco. Os meus, para quem morou, poderiam ser milhões, mas, sabe-se lá onde estão... 

Faço por menos, leitor: escrevo apenas para você!... E economizo paciências: conto, não precisa ser livro. Curto, difuso e (re)finado.

Dados os personagens e as consequências de tais sucessos, compreendam que se passe da galhofa à melancolia. O jeito é buscar recursos, de estilo, no nosso mais famoso autor, a gente faz o que pode...

Cada um com a sua obra, mesmo que rala. O mais são piparotes.

 

 

Capítulo 1           Órbita do autor

Faleço agora, a qualquer dia e hora de 2112, o que tomo por casual e certo. Daí, o que redijo é testemunho, certamente banal e, por tardio, inútil. Seria testamento, não sei bem a quem, não tivesse visto as minhas casas, os prédios, as obras, tudo que fui, engolido por chuvas e ondas, um enterro bem fundo e n’água. 

 

Capítulo 2           O espanto

Assim nasci, a título de cidade, o que era, à época, em todo o novo mundo, o melhor a fazer.

Esperanças... Vivi como tal todo este tempo, o que, aliás, foi o de menos. Não mais que aguentar passar o tempo, que, por algum meio, morre-se. Não há, que releve, qualquer tipo de emplasto anti-hipocondríaco das mazelas diárias, nem, que supere, a muita fama de beleza avassaladora a espantar o mundo: caberá a todos meramente morrer. Variam apenas momento e conforto. Quanto a lugares, o jeito: vejam como mergulhou esta cidade!...

Cidades, se morremos, é porque também morre a espécie que nos cria, ah, estes animais humanos!...

Não há paz nesta vida. Ou não se aplica ao tema. 

 

Capítulo 3           No fundo, a visita

No fio dos meus limites, no torvelinho das águas, eis que entra-me ela pela memória... Uma auréola negra de nuvens a segue, e ainda assim mantém-se elegante. Colina singular em seus contornos, imagem de mulher, como sempre a vi, a doce pedra do Pão de Açúcar.

Ah, as mulheres, maravilhosas!... Montanhas mulheres que me conformam, que me formam e que me formaram como cidade, a mim, o Rio de Janeiro, o que já era...

Tanto tempo a ela atento, e ali estava, agora, a me encher os olhos. Como sempre, em todos o meu curto tempo. Em que não fiz mais que admirá-la.

Pão de Açúcar entre iguais - Guina Araújo Ramos, 2000

– Visitando defuntos?... Perguntei, bobo. Praticamente eterna, deu um muxoxo: – Ora, tudo morre, ainda que leve tempo. 

A voz, amiga e doce, com um travo de sal. O alto mar novamente a contornava, voltara à sua antiga pose de ilha. Sem mágoas. A firmeza era a mesma, ficaria aqui por muito mais tempo. Desmanchava-se eu, irresponsável lugar, afundando-me à sua frente e do mundo. Sentindo mesmo algum prazer, pelo espetáculo que daria, ainda que muito poucos o vissem.

Esvaneceu-se em bruma, a graça. Mas, plena, voltou logo, e acompanhada. Trazia, como um filho, o Morro da Urca, que lhe completava o volume.

Estavam juntos há milhões de milênios, não lhes importavam os oceanos, e seus avanços...

 

Capítulo 4           Um delírio, quase real

Variei... Muitos líquidos, confusos, demais para uma cabeça encharcada. Eis que me surge um peixe-boi, bicho há muito extinto, e me impõe uma retrospectiva. Fomos ao seio do mar, ao ano zero do nosso progresso, quase 600 anos atrás.

E demos de cara, de frente, de outro ponto de vista, com a musa da terra. Paralela ao mar, sensualmente deitada, com as suas fantásticas curvas de montanha:

– Chama-me Modelo ou Risco; sou teu perfil.

Impávida, indiferente, um tanto erodida nas franjas, e nas fraldas, e faldas.

– Esperança, ainda?, zombou... – Egoísmo ou solidariedade, este o nosso ser. Ou não ser? – tentei filosofar... Deu-me um olhar maroto. – Só o tempo subsiste, não há outra lei. Vá.

Quando sumiu, imaginária, sério: surtei!... Pus-me a rir, mais idiota ainda. Parecia, a quem visse, que entendia tudo, embora um tanto grogue. Nevoeiro baixo, sonhos nebulosos...

Nessa, dando o pulo do gato, o peixe-boi sumiu, de vez.

Afinal, há uma história para contar. Conto.

 

Capítulo 5           De passagem

Consta, leitor, que o livro que tens em mãos (e trate-o bem, que restam poucos!), em que saiu publicado este conto que eu, Rio de Janeiro, conto, foi sendo escrito durante os anos zero do século XXI e acabou sendo publicado há quase exatos cem anos, com histórias supostamente escritas cem anos depois, se me explico bem... Assim, aqueles que se derem ao trabalho de ler estas memórias, que me são póstumas, mas que lhes serão novas, têm esta vantagem: já conhecem a maior parte da História! 

Oriento os que foram mal nisto, ou em Matemática escolar: nasci, se assim chamamos um ato de fundação, no inexpressivo ano de 1565. Teria sido então o evento mais importante do mundo, não me restam dúvidas. O que se seguiu, sabemos todos, e reafirmo, não é, nem um pouco, da minha responsabilidade.

Uma cidade é um mistério humano.

E nada mais mistério que o humano.

 

Capítulo 6           Desde o começo

Atravessadas algumas escaramuças comerciais, marítimas, coloniais, geográficas e naturalistas, tendo eu me livrado dos tão belicosos indígenas locais, ainda que naturais, e também de outros enxeridos alienígenas europeus, acaba que assumo a ascendência lusitana. O que, para os mais pretensiosos, talvez não seja, de todo, grande elogio à minha esperteza (de resto, sempre relativa, o que pode-se ver nos políticos que elegi...), mas, ainda assim, serve muito bem para explicar o conturbado final, de que já os preveni.

Até o XIX, passaram-me sem graça os séculos, navios indo a outros mares, o ouro de Minas a outros cofres. Com a ruidosa chegada da Família Real começa um agito: o Carnaval nem bem existia e eu já vestia a fantasia. Quanto a ficar o país independente, apesar do garoto safado que tomou a si a coroa e do bom velhinho que carregou amuado o cetro, resultou que tal fato, improvisado, em nada afetou meu papel, então capital, e muito menos os negócios e os costumes, a escravaria de então que o diga...

Como tudo muda, e tendo o país virado República, eu, vítima de alguns desconfortos de relevo e de orla, inchado de becos esconsos e atingido nas carnes por deletérias doenças, acabei sofrendo umas intervenções urbanas que, de tão afetadas e sobremodo pesadas, nunca mais fui o mesmo, se é que algum dia o fora... Em mim, em vez de apenas ruelas, rossios e caminhos, agora também esplanadas abertas pela derrubada dos morros e o vão de espalhafatosas avenidas. Enfim, um progresso de espaços, mas um arraso de histórias, um desapreço de vidas!...

Talhado para ser destaque no concerto das cidades...

Assim, me rasgam uma avenida Central, e logo me arrasam a figura encantada do Morro do Castelo!

 

Capítulo 7           Quatro pilares

Cabe aqui um lamento que, um tanto resignado, é sempre válido.

Vivi toda vida pisando charcos, abaixo, e vendo montanhas, acima, fora outros enlouquecedores extremos tropicais. Foram sempre as colinas meus pousos seguros, sítios altivos a me darem algum equilíbrio, se o leitor entende que os tive... E como resistiria eu, o Rio de Janeiro, até o fim do século XIX, sem a presença, a me aguentar, do meu primevo quarteto de morros?...

Criança-cidade assaz desejada, desde as origens me agarrei às saias do Castelo, às graças do São Bento, às forças do Conceição e às queixas do (e ao) Santo Antonio, até que, num histórico descarte humano, jogaram abaixo o Castelo...

E de que adiantou?... Logo o povo, entre vinténs, vacinas e chibatas, sempre sobrevivente, tomou as devidas providências... À falta de sólidos recursos para habitações e passeios mais decentes, o povo colocou-se (alguns diriam, “homiziou-se”) em outros morros, dos meus, ao sul e ao norte: inventaram de vez, em ato desbravador, em gesto deliberado de posse, a múltipla favela, solução carioca. 

 

Capítulo 8           Mar, cela...

Com o Castelo arrasado, Conceição esquecido, Santo Antonio encolhido, restava, de bela, nesta época, cem anos atrás, a face de pedra formosa da ínvia encosta do São Bento, meio encoberta por vestimenta barroca. Da antiga Praça Mauá, indo além do museu do Amanhã, que se prende ao passado, até o museu do Futuro, ex-MAR, justo o que percebera o futuro, desviei do próprio umbigo, num átimo, o olhar. E quando o joguei, de passagem, sobre esta vertente do São Bento, percebi de imediato, e abaixo dos vestígios históricos da escarpa, ao notar a elegância das armações e a sutileza das origens, o quanto estava amarrado... 

Mais um dos meus deslumbres, de paixão pelas montanhas do Rio!... Ah, queria escalá-la!... Pensei até, um tempo, em me instalar na Ilha das Cobras, apenas para poder, de lá, namorar a colina.

Uma encosta rústica e sonsa, vestida à larga, em tapumes e contenções antiquadas, e levemente encimada pelo chapelão colonial do mosteiro.

E este tempo todo, de atalaia, de lá: à vista, o mar, das celas.

 

Capítulo 9           Arrumações

O final do século XX, de tão moderno, não passou mesmo de um marasmo, se não de um malfeito. Eu me sentia intoxicado: vias entupidas, caminhos invadidos. Meus subúrbios, droga!, que foram refúgios pacíficos para o povo atacado pelo choque do moderno no Centro, agora sangravam. Nas profundas, a coisa insana, a barra pesada. Eu, sufocando... Ah, precisava malhar!...

Até que muda o milênio e, para alívio geral, jorra um óleo pesado do fundo do mar. Com ele, promessas de grana e de maiores poderes. A crise, que vinha comendo solto lá fora, apontou seus olhos e os do mundo, sobre mim. Uma aposta e tanto... Eu, achando que só tinha a ganhar...

Vindo o jogo de fora, com megapropostas de eventos e lucros, aproveitar a oportunidade era o mínimo a fazer e, ora bolas!, o que mais se faria?... Tempo de esportes e outras jogadas: investimentos e obras, reajustes forjados, remoções reforçadas, privilégios escusos, tudo aquilo que, de nosso, é melhor praticado.

Eis que uma onda internacional se espalha pelo país: acontece a Copa!... Pena que certas ondas sejam assim nebulosas... Também teve o tempo, apertando o clima, o verão se espalhando por todo o ano. E perdas pesadas, em roubos de monta, em ganhos espertos. A chapa cada vez mais quente. Armações em telas, mais fortes que redes. Eu, tudo dominado, rendido, perdi...

Os times daqui pelas tabelas, e o futebol nem era mais a questão. Mas, os jogos sim!... Ah, que farra fizeram!... Ao fundo, balofo, abaulado, um Maracanã coberto de abas, com a pose e a posse de bola meio balançadas. Ainda assim, não tremeu na parada: na foto, engalanado, sempre.

As jogadas, o jogo, tudo à revelia do Rio, e eu queria que fosse para todos... Num esgar, ao me doer, até fazia que ria... Seguro que teve quem se deu bem, levaram uma grande bolada. Eu, na minha, calado, melhor me esconder. A avestruz deixa recado do susto, eu fiz que nem o tatu: mergulhei fundo, envergonhado.

Um tropeço, canelada no meio campo da cidade. Não pelo meu lado, que não tenho culpa, se acaso uns acham que tenha a Copa fracassado. Doeu, mas todo jogo acaba, passou.

Afinal, tudo muito fuleco: sem graça, sem título, sem nada...

 

Capítulo 10                  Olha a piada!

Não sabendo me conter, entrei de novo no pique.

Só pensava nos Jogos: que me ocupariam a cidade, a confraternização seria geral, o estado se veria olímpico, coisa e tal.

Nessas horas passa um frêmito generoso no povo, uma ânsia doadora que atravessa a cidade, não há quem não se arrepie. Vai daí, tudo se aceita e pronto: o circo outra vez montado!

E a sofreguidão chegando muito antes da hora. Estaria eu deprimido?... Ah, nem tanto... Mas havia entusiasmo na cidade?... Sim, de uns tantos. Faz-se o que se pode, mas, fala sério!... Toda aquela oferta de sucesso, só podia ser, olha aí!, piada!...

Fui me cansando de gestos descompensados, de repetitivas novidades: não dá para bater tantos recordes...

A Olimpíada durou nada, não mais que uns dias. Talvez tenha me faltado saco para seguir todas as bolas. Ou não haja mesmo espírito esportivo que aguente tal variedade de desperdício de tempo... Valeu para uns, e também nisso não há novidades. Ganharam mais, do ouro, empreiteiras, construtoras, imobiliárias... Da prata, seus políticos particulares, em lançamentos secretos. Do bronze, quem foi à praia e não deu a ela a menor bola...

Desligando a tomada do colorido banho de propaganda, aquele jorro que vem da TV, me percebi um Rio de cicatrizes: cortes do Metrô na linha errada, filas de ônibus em baias vagas, túneis de carros em curvas vazadas... 

Vigília do Pão de Açúcar - foto Guina A. Ramos, 2001

Se há um começo para o furdunço que se segue a isto, com data marcada, a virada, ah, foi bem aí, 2016, nos Jogos.

 

Capítulo 11            Vigília

Se há uma figura, na paisagem ao redor, que me seduziu desde a primeira portada, mulher e montanha, foi a linha esguia de pedra da mirada do Pão de Açúcar.

Uma montanha em vigília, que se mantém atenta, no observar das transformações do mundo, em telúrico papel feminino. Eu, este todo tempo, vivendo de ver a formosa vigia. E só prazer em vê-la, ao sol e à chuva, tantos são os que sabem...

 Sabem também quão ingrato é o amor, ou coisa que o valha, do saber ou do amor. No que vigiava a vigia, via a sua vigília virar-se de mim para fora, para outra direção, para um mar de apaixonados que lhe passavam ao largo.

Ainda me restava, dela, o fixo conforto de sua presença, estável e doce. Ah, pena que tomasse meu tempo com o desperdício da atenção por indecifráveis joguinhos numéricos, contando e dispensando, enquanto orientava os minúsculos navios que tentavam cortejá-la.

Qual cidade não a amaria, pedra açucarada, como o seu maior ícone, tivessem as outras a sorte que a mim coubera?...

Se amores devem ser confessados, terei que fazê-lo, por ela.

Que fazer, não?

 

Capítulo 12                  Próteses de banguela

A fissura por prédios espelhados começara um tanto antes da Copa, questão de custos e ganhos. Refletidos nas fachadas, meus ângulos se multiplicaram em imagens. Só as melhores, e tudo acima da cota, para quem me olhava de baixo. O falado limite de 50 andares ficou para trás, tornou-se coisa rasteira, queriam aqui a Xangai das beiradas.

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O excesso de vidros - foto Guina Araújo Ramos, 2013
De meu lado, comecei a me sentir paliteiro. Também Niterói, tempos antes, perdera as estribeiras, ao soltar gabaritos. Lançamentos ainda se inspiravam em Niemeyer, mas agora suas curvas horizontais alçavam voo cada vez mais alto, em absurdas torres recurvas e gigantescas colunatas gingadas.

Dei-me conta de que, de pedra a concreto, mudaram as arcadas da boca banguela da baía da Guanabara (já a aparência, em nada), esta ranzinzice de Lévi-Strauss, por Caetano, em música, relembrada. Além dos pontos que louva, Pão de Açúcar, Corcovado, agora eu tinha implantes, uma protética arquitetura de isolados prédios em terrenos de ponta, que me foram espetados, os Towers & Trades & Trumps, monumentais dentes artificiais a me morder a histórica paisagem.

 

Capítulo 13                 O rico sobe

Sendo o jogo jogado, é certo que euforia não se mede e nem se controla. Entrei pelos anos 2020, e adiante, um tanto desarvorado, e realmente as árvores iam ficando escassas nas ruas... Entrava em estado cada vez mais desgovernado, o que, sendo ruim, não é pior do que ter seguidos governantes interessados demais nos próprios negócios, e nos impróprios.

Era mesmo saboroso, coisa fina e grossa, o jorro de dinheiro vindo de lá do petróleo. Quem ganhava pouco até se preocupou um pouco com a perda de uns poucos por centos dos royalties, levados, à força de lei, para outros estados. Mas, o que se pode construir, o que logo rende, ah, isto trataram de fazer, e rápido. A terra até parecia sem dono... Ou, tendo, mas não sendo usada, quem podia, simplesmente ia lá e tomava.

Nos níveis mais altos, formava-se nova rede de confortos. Quem subia na vida acomodava-se nas montanhas, de Santa Teresa ao Corcovado, passando até além do Sumaré. Sendo toda poderosa esta posse e a ocupação bem arquitetada, quem evitaria que novas mansões ocupassem o lugar das matas?... Reinava uma espécie de herança para os bem abonados pelo Estado: a legislação ambiental fora, muito antes, e não por acaso, deliberadamente liberada.

Estava tudo combinado. E eu, o Rio, a cidade, é que não sabia de nada.

 

Capítulo 14                  O povo vaga

Meu povo, o de baixo, sempre se virando, em todas as direções, vagando, e nada... Dos lugares da moda aos decadentes buracos e de volta, que a moda mudava. Removidos ou saindo forçados, ainda que, sempre que podiam, subindo pelas beiradas, exceto os mais desgraçados. Não dava para ficar afogado, era preciso abandonar os baixios... A ameaça de aumento do nível das águas não era, afinal, tão vaga assim como falaram...

Hum, pegar esta palavra vaga, para um exercício de mote, já me faz cair em altas divagações... Os vagalhões que invadiram a Zona Sul... As vagas das garagens subterrâneas abandonadas... As garantias muito vagas dos governantes... O vagaroso ritmo das obras de contenção... O vagar dos que foram desterrados pelas águas, à procura de lugar em encostas vagas...

Entrei pelos 2030 com a nada vaga impressão de que o Rio chafurdava em ressurgentes águas. E eram as antigas lagoas e os brejos de então que, pela pressão do mar, retomavam seus lugares: o boqueirão da Ajuda, a lagoa do Desterro, a da Sentinela, o mangue de São Diogo, os vãos das ilhas do Fundão, os campos encharcados de Guaratiba, os rios da Baixada...

 

Capítulo 15                  Uma rede febril

Apesar da insolência das águas, a instilada inspiração olímpica, aos surtos, voltava. Parecia uma fria, uma furada, e todo mundo achava, mas logo a temperatura subia um pouco e as gentes se agitavam, feito antigas danças de marionetes.

Atingiu novo pico vinte anos depois, em 2036. Veio com febre alta, concentrada em espaços confinados, nas arenas reformadas do Engenhão e do Maracanã, e na nova, a luxuosa, do Alto da Boa Vista. Desta vez, nada dos Jogos se espalharem pela amplidão da espaçosa Barra, entulhada agora de prédios praticamente afundados.

Outro tom, outra política, e ainda mais restritiva. Novos e pesados compromissos. Vendo que éramos bem comportados, uma corte de dirigentes internacionais decidiu que seria justo incorporar o Rio de Janeiro, como membro efetivo, a partir de 2052, à União das Cidades Olímpicas.

Esta história de uma rede de cidades que se agregavam, destacadas das demais pela emoção da experiência olímpica, fez bem mais sucesso do que se esperava. Certamente, o que garantiu status de país ao conjunto das cidades foi a aceitação da entidade como Estado-membro da ONU, mas, reconheçamos, a proteção de países da mais alta capacidade bélica também ajudou um bocado...

Sendo instantâneos os acertos e ainda mais rápido o negociado, por que eu me incomodaria de fazer parte de um país fragmentado, espalhado pelos cinco continentes?... Não estava mesmo tudo, definitivamente, em rede?...

Em mim, uma rede de interesses também predominava, uma longa tradição local, sempre disposta a se colocar acima dos percalços do tempo e do espaço. Não necessariamente do mercado, salvo tropeços, os advindos de resistências na base popular.

Ora, competir é bom, o apelo é olímpico. Vencer, reconheçamos, é bem melhor... Por estas e outras, eu não mais pertencia ao Brasil, agora fazia parte da União das Cidades Olímpicas. Ou, em outras palavras, na sigla em inglês, a língua oficial, o Rio de Janeiro era OCU.

 

Capítulo 16                  Quase derretido

Há tempos não prestava atenção no que acontecia por lá e resolvi conferir: por mais que escorassem a falda, ficou difícil sustentar o progressivo derrame do morro de São Bento.

O problema, quase todo, vinha de baixo, do túnel travesso, o tal elevado invertido, tantas vezes inundado pelas ondas pesadas, e altas, que invadiam a Guanabara. A umidade, esta também não sossegava o seu ascenso e invadia, sem dó, o sopé, e subia por dentro da encosta e das paredes. Quando encontrava o calor do sol, que rachava, os dois explodiam em bolhas, trincando ainda mais a agora gratinada fachada.

Uma química que afetava o coração da montanha, e o meu, até o talo. Por volta de 2040 parecia evidente que a bela escarpa, e pensar nisso já me trazia saudades, pouco tempo mais resistiria, apenas uns anos a mais...

 

Capítulo 17                  Os sinais

Eram sinais?...

As ressacas, nem tanto, porque eram, há muito, históricas. E agora maiores, os saltos das ondas entrando em lojas e até apartamentos, desvalorizando andares mais baixos. O rebrotar das lagoas e dos charcos urbanos, até pode ser que sim... Uma Paraty moderna, ou uma Veneza, se ainda existisse: a Rio Branco com água no meio-fio, o Centro uma lamaceira salobra. 

Crescia a enxurrada das águas, juntando às altas marés as águas descendentes dos morros, dos maciços, da serra, e outros trechos lavados. Mais estragos faziam as águas de cima, as baixadas do céu, e a cada ano mais, até aquele exagero, em 2069, dos 78 dias seguidos de chuva forte, quase sem estiar, o chamado Chuvaréu!  
Chuvaréu no Flamengo - foto Guina Araújo Ramos, 2013
Se ainda falamos de recordes, também este foi batido, e excessos de água empapam qualquer encosta... O deslizar das primeiras favelas, as que se agarravam aos morros, poderia até ser dado, nestas condições, como acidentes de causa natural, como disseram. Realmente, a favela do Dona Marta, e sempre reclamaram dela, era ferida exposta nas ancas das montanhas de Botafogo. De qualquer modo, a vegetação logo se recompôs. Lamentável foi a queda do Vidigal, que levou junto a Niemeyer, mais uma ligação perdida. Por estas e outras, o trânsito terrestre praticamente acabou, e haja helicópteros, para quem tem...

As doenças são sinais do fim?... Eis outro ponto discutível. Quase todas, eu já carregava no corpo, de longa data. A dengue, após tornar-se fatal, não mais me deixou, que mosquitos não faltam, o clima garante... Febre amarela e cólera, também muito antigas, podem ter tido um sumiço, efeito da vacinação, verdadeiras guerras, mas, como e por que não retornariam?... O próprio ambiente retornara àquele clima de antanho: os mesmos miasmas, as mesmas inhacas, o mesmo xexéu. Ou, agora, piores?...

Que as pandemias internacionais tenham chegado, também não é justo que se debite na minha conta!... Milhões morreram em outras grandes concentrações urbanas do mundo, não chegou a ser privilégio meu. E com os transportes apertados, as multidões desvairadas, epidemias são eventos normais.

Meios da seleção natural. Não chega a ser um sinal.

 

Capítulo 18                  Onda de arromba

Até a década de 2030 – acredite, leitor, se vens de outra galáxia –, eu, o Rio de Janeiro, tirava onda!

Sou cidade-litoral, que inventou vários esportes de praia: desde o frescobol, individual sem ser competitivo (surgido em Ipanema ou Ramos, há controvérsias) até os coletivos, futebol e vôlei de praia. E a sua mais perfeita miscigenação, o futevôlei, malabarismo da areia.

Sim, mas, onde foram parar as areias?... Levadas terra a dentro por ressacas, talvez. Nem mesmo se contavam mais as ressacas, todo dia eu podia ser invadido pelo mar revolto. Um porre: uma ressaca só!...

Rico de surfistas o Rio de antigamente, com ondas mansas, merrecas... Quando o mar radicalizou, desapareceram, junto com as areias, os beach breaks. O mar, hardcore, passou a bater não só nos costões de pedra, também nas fachadas dos prédios. E sempre um big rider encarando os novos points-breaks!... Esses caras são loucos!

Ah, o carioca, tão criativo, não deixaria de inventar um novo esporte!... Lá pelos anos 2070, o street surf fazia o maior sucesso. Das preferidas, a avenida Pasteur: o mar, entrando pela praia Vermelha, ia, em pororoca, até a enseada de Botafogo. Os surfistas podiam dropar até o Aterro.

Chico Buarque imaginou amores submersos, de quem não teve tempo de partir. Muito antes do aquecimento global, Rubem Braga amaldiçoava Copacabana, galeria litorânea de pecados, e a imaginava possuída pelas águas. Em 2090, quem vivia dizia: ai de ti, Rio de Janeiro!... De um Rio que tirava onda às ondas que tiravam pedaços do Rio...

 

Capítulo 19                 Bola n’água

Engordou, emagreceu, ficou doidinho... Ninguém aguentaria tanta mudança, é fato. Rapaz, o Maracanã era de meados do século XX, de 1950: é muito tempo!... E ficou por mais de 50 anos em boa forma, sólido, aconchegante, para utilização pública: era geral!

Aí começou aquela história de “prepara para isto”, “prepara para aquilo”... Veio o Pan em 2007, a Copa em 2014, as Olimpíadas em 2016, o Festival da Independência em 2022, o Sínodo das Igrejas Ocidentais em 2027, a nova Olimpíada em 2036, o Quartel-General de Defesa do Pré-Sal nos anos 2040 e, quando chegava ao centenário, já decadente, a tentativa de transformá-lo em fazenda de criação de peixes e moluscos.

Rebatizado em 2071 como Dispensário Quincas Borba, fizeram do Maracanã o centro de triagem de flagelados de várias procedências. Não surpreende que começasse a apresentar fissuras estruturais e que, poucos anos depois, eternamente alagado, sem a mínima condição de uso, como se tivesse endoidecido com todas as mudanças, desse, com volumoso suspiro, um giro sobre si mesmo para, finalmente, chapinhando nas águas barrentas em uma pirueta saudosa, desabar.

Como se fosse um pudim cutucado de mau jeito.

 

Capítulo 20                 Que dúvida?...

Alguém aí quer mesmo saber por que determinada borboleta negra não era azul?... E, afinal, alguém sabe o que é uma borboleta?... Lembram-se das bandejas de asas de borboletas azuis?...

Nem lembro mais, é coisa (bicho?) há muito sumida(o).

E vamos em frente!... Ou, melhor dizendo: ao fundo.

 

Capítulo 21                 Ao perdedor, as baratas

Sendo do mesmo contexto, roubo outra ideia do autor, de outro livro, ainda que possam me acusar de distorcer o sentido...

Falo das obras perdidas, as deterioradas, a começar pelas sobras de grandes eventos. A Vila do Pan, do distante 2007, é bom exemplo. Da falta de firmeza do solo, às margens das lagoas da Barra, sabia-se. Pena que os que se interessam por assumir governos são, em vez dos sábios, os que têm interesses demais e sabedoria de menos... Com a terra encharcada e os prédios desnivelados, rachando, não houve desequilibrados suficientes para ocupá-los... E falo dos fatos mais gerais, de estádios que viraram albergarias, como o Engenhão, após acolher os desabrigados de sucessivas ondas de enchentes, e falo da explosão de bombas esquecidas nas corridas do Autódromo de Deodoro, que até parece piada de caserna...

Vila Olímpica invade Vila Autódromo -
foto Guina Araújo Ramos, 2014

Nem tudo que me desmoraliza é obra de desgovernos, o poder privado também teve seus ataques. É simbólico o esforço dos que compraram prédios na ex-Vila Olímpica para expulsar, a golpes de mandatos, para completar o estacionamento do condomínio, a vizinha pobrezinha, a Vila Autódromo, que ocupava espaço útil aos carros.

E a chuva de vidro?... Está certo, é tudo mistura de tudo. Como o calor de 50º e também as crises de energia, que prédios fechados por vidro precisam de muito ar condicionado... Fora frentes frias súbitas, excesso de chuvas, ventos desgovernados. E ainda o abandono dos donos, a manutenção escassa. Daí, quando de vez em quando voava, muito solto, um desses vidros espelhados, e batia em um troço qualquer, e se esfacelava em caquinhos, comemorava-se mais uma chuva de vidro na cidade!... O passante, usando guarda-chuva de aço, não corre o menor risco.

De cima, o calor. Vindo de baixo, as águas. Grandes prédios, construídos em áreas alagáveis, sucessivamente abandonados. A umidade subindo. Acima da umidade, os bichos. Vidros espelhados que se arrebentam nos excessos do clima, ar quente, clima abafado, tudo estimulando a reprodução das baratas...

Baratas. Milhões de baratas. Bilhões de baratas ocupando antigos espantos da arquitetura internacional. Luxuosos implantes urbanos apodrecendo na boca banguela, os dentes careados, caquéticos.

Aos vencedores do jogo imobiliário, há muito tempo jogado, os lucros. Aos que compraram e não puderam passar adiante, o mico (ou nem isso, que há muito sumiram). Aos perdedores, as baratas.

 

Capítulo 22                  Parabéns, mas a quem?

Em 2065, fiz 500 anos.

Comemorações chochas.

Os fogos deram chabu.

Muita chuva.

 

Capítulo 23                 Amores, que vão

Por volta de 2085, sei lá...  De repente, fico sabendo – ah, o quanto me traumatizou... –, que a morena colina do São Bento degringola, desmorona, vira um caco!

A umidade advinda do túnel submarino foi realmente fundo. Ou alto... Com a pressão da inundação no contorno da base, o morro da curva do porto não aguentou. Caiu, depois de resistir muito. A ponto de levar, na queda – talvez quisesse sua companhia no fundo – a graça do mosteiro de São Bento.

Quase afundei junto!... Aquela colina, confesso, amei... Sim, foi há tempos, em outros momentos. Não resmunguei demais, retavam outras a cuidar. 

E não é que o seu contraponto transguanabarino, a ilha da Boa Viagem, a da igrejinha solitária que há séculos lamentava a partida dos navios, lá de Niterói, desmoronou também, na mesma época, chorosa?

Talvez uma subterrânea solidariedade geológica.

A estudar, se há quem o faça.

 

Capítulo 24                 Revolução

Se a coisa foi ficando ainda mais preta, a princípio pus na conta do petróleo. Entrando pelos 2020, uma meia parada, um freio de arrumação, todos ansiosos pela grana do pré-sal. E ela vindo, trazendo sempre mais confusão, muito mais...

Plataforma - foto Guina Araújo Ramos, 2017
Primeiro, as instalações. Os portos enlouqueceram de manobras, a baía entupida por navios e rebocadores, parecia que qualquer coisa flutuante viraria plataforma. Depois, as pretensões. Muito presidente veio molhar a mão no preto do óleo, os brancos dos sorrisos destacados na foto. A luta pela grana passando por todos os escalões, a divisão dos royalties sempre duvidosa, as perdas sentidas e jamais assimiladas. 
As ameaças de abandono se concretizavam: acabaria a era do ouro negro, com tantas novas energias inventadas, ah, o prejuízo que me davam... Eis que alguém faz uma, e mais uma, revolução tecnológica: surge o “petróleo verde”. O óleo, o mesmo, só que embalado em um consumo bem planejado – não mais que mudar motores, capturar gases, neutralizar a fonte, reprocessar derivados...

E a produção sem parar de crescer, que a sede de energia do mundo continuava negra.

 

Capítulo 25                 Revolução de fato

Ainda bem que a ideia de transformar antigos porta-aviões em plataformas de petróleo deu absolutamente certo!... Renovado o campo técnico, chegava a hora de revolucionar o campo político, novos geodomínios surgiam. Bastou que uma dessas plataformas declarasse sua independência, logo seguida por outras, para que nascesse um novo país praticamente no meu quintal ou, melhor observado, na minha praia!... As plataformas de grande porte e este grande número de porta-aviões reciclados, que ainda portavam boa parte das antigas armas, foram bases para a nova federação, Plataformas Unidas do Sul ou, simplesmente, PUS.

Muito razoável que o PUS ampliasse sua presença, como Estado, para algumas bases terrestres, Campos, Macaé, e, em 2081, impusesse, é claro, a incorporação desta cidade do Rio de Janeiro, incluindo a área limítrofe, até a serra do Mar, fronteira seca com o Brasil, reconfiguração naturalmente consentida pelo vizinho país, em ato de profunda sabedoria militar.

 

Capítulo 26                  Adeus

Degringola-se o país. Ou, antes, o poder.

O Brasil, este suposto país por baixo de uma bandeira geométrica, divide-se aos poucos, de várias maneiras. A unidade que alardeava seria, sabidamente, uma impossibilidade.

A História tentou provar várias vezes. Um dia, acontece, e sobrou para mim. Eu que, de certa maneira, sempre estive noutra.

 

Capítulo 27                  De molho

Semiafogado, no espírito e no corpo.

Assim meu povo assistiu à transmissão, direto da Plataforma Capital, da proclamação do ato de anexação do Rio ao PUS.

Às plataformas de extração de petróleo, o crescimento das águas oceânicas pouco importava. Dão-se ao luxo de flutuar acima dessas variações. Para os que se defendiam em terra é que a alta das águas incomodava, assunto premente. E enchente.

Realmente, estar na chuva (ou por baixo) é para se molhar... E para se virar também, porque a desorganização dos espaços – o sub, o sobre e o meio urbano – há muito entrara em alta aceleração, ao ritmo e à altura das ondas.

Tudo isto levou, nas internas, a uma fatal divisão sócio-estratégica, à implosão do tecido da cidade, à repartição do que ainda se chamava Rio de Janeiro.

Como se eu já não estivesse acostumado...

 

Capítulo 28                  A rede

Os ricos, desde meados do século, vinham se encarapitando no alto dos morros, formando por cima a sua malha de investimentos. Começou com a construção e o sucesso de um teleférico ligando o morro da Urca ao da Babilônia, e deste, logo depois, ao dos Cabritos e à beira da Lagoa. De lá, partiu a primeira ViaFeérica, eficiente e volumosa linha de cabos carregadas com bondinhos da mais alta capacidade, um outro nível... Passando pelas Paineiras, chegaram ao Alto da Boa Vista. Daí, saíam ramais para Tijuca e Grajaú, de um lado, e para Pedra da Gávea e Itanhangá, de outro. 

Naturalmente, logo surgiram linhas acessórias, que ligavam a ViaFeérica às ex-favelas, as que resistiram aos desmoronamentos. Digo “ex” porque também nelas ocorriam mudanças. Estimuladas pela sofisticação dos estrangeiros – e vieram tantos! –, em pouco tempo hosts, chefs, choachs, designers etc comandavam os mais badalados bochinchos dos mais altos píncaros habitáveis do Rio de Janeiro, um roteiro conhecido como Favel-in-on, o que significou, na prática, a substituição das favelas por condomínios fechados.

A roda da favela gigante - foto Guina Araújo Ramos, 2020

Também não foi tão rápido assim... Só com o fim da Floresta da Tijuca, de que sobraram apenas os trechos incorporados aos quintais de novas e extensas propriedades, já nos estertores dos anos 2090, é que finalmente construíram a travessia da ViaFeérica sobre o alagado de Jacarepaguá, expansão necessária para atender aos novos proprietários de terrenos nos cumes do maciço da Pedra Branca, gente de altíssimo nível sócio-financeiro, nem tanto cultural.

 

Capítulo 29                  A lama

Os “pobrinhos” – mais pretinhos que branquinhos, mantendo-se a tradição –, aqueles que não sumiram de todo, ficaram lá por baixo, se ajeitando nos mangues, fazendo suas palafitas, morando muito no líquido e meio que no aéreo. Não lhes sobrava muito espaço decente, nem seco.

Os antigos túneis do metrô, só mais tarde lhes seriam úteis, levaram décadas para que mudassem sua destinação... Em 2047, evidenciada a invasão das águas, indo muito além da parte litorânea, de Copacabana ao Leblon, foram os túneis abandonados pela empresa concessionária, e é então que começam as primeiras ocupações dos trechos secos, dentre os que ficaram inúteis.

Limitada a utilização da rede, sobrou muito espaço, e protegido. Resultou em verdadeiros bairros populares encravados na rocha, uma nova arquitetura. Este mundo sob as rochas começou a se estabelecer no trecho de túnel sob a Rocinha e no rabicho do morro da Babilônia, por volta de 2060. Muita gente que morou em simpáticos prédios de Ipanema, agora ajeitava-se nas avantajadas galerias da estação duplicada do metrô, obra de algum político ensandecido, se não foram congestionar ainda mais as comunidades do Cantagalo ou Pavãozão.

 

Capítulo 30                  Salvos

A Barra da Tijuca continuava sorrindo para o Atlântico, com seus dentes ocos, praticamente abandonada ao sol e à chuva. O antigo Centro, bem que poderia ter sido transformado em um grande aquário, houvesse ainda apreciadores...

Sempre se pode salvar qualquer coisa... Ao menos, alguns trechos de ambos os bairros foram mantidos em intensa atividade econômica, graças ao abandono dos andares térreos e à junção dos tetos de edifícios. Estas novas estruturas resolviam um problema capital: facilitavam o acesso aos helicópteros dos empresários, que só dependem de pouso certo...

Os funcionários, menos exigentes, continuavam indo ao trabalho de barcovans. 

 

Capítulo 31                  A sobra

No restante da cidade acontecia de tudo, melhor nem detalhar. Em linhas gerais, lembro o quanto os terrenos em torno (e por cima) dos morros do Complexo do Alemão se valorizaram. Tanto, que logo mudaram de donos, ainda mais depois de substituírem o antigo teleférico por uma ViaFeérica mais extensa.

A Baixada garantiu alguns refúgios elevados para os mais necessitados. O resto do povo voltou a ser alagado pelos rios, de novo incrementados. Em muitos trechos, a navegação tomou lugar dos ônibus.

 

Capítulo 32                  Por partes

Ah, cansei.

Termino logo esta história, e no original também acaba de repente, que nada é mesmo para sempre.

Morri, conto de vez. A cena é forte, mas quem entrou nessa de ler este muito pouco razoável arrazoado deve ter mesmo estômago forte (ou qualquer outra parte assim que lhe seja útil): a mim, Rio de Janeiro, afogaram.

Mais do que me afogarem, se eu morri mesmo, e garanto que morri, é fato também que me esquartejaram. Nessa ordem.

A ordem pode ser questionável, não me importa: não é mesmo possível matar, de novo, um morto.

O que mata a gente é gente, e muito. Gente que manda, e que manda matar. Que junta ou divide, ou que exacerba até que não se possa mais viver, conforme o poder.  

 

Capítulo 33                  Trilogia

Assim, refez-se o futuro do Rio de Janeiro. Se não deixei de ser único, não sou mais tão uno. Ultrapassando antigos cenários, deixo de ser aquela cidade dividida de outrora.

Evoluo, ou não?... Não sei, mas me assumo como, em um esbanjamento de esquizofrenia, cidade tripartite.

No espaço é que se faz concreta a hierarquia social, e a econômica também, e assim tem sido. Que seja, aqui.

 Na parte baixa da antiga cidade do Rio de Janeiro sobrenadam agora, tentando não se afogar, duas grandes delimitações, com o mesmo status de território. Nas beiradas das montanhas, o RioSub, aquele espaço antigamente ocupado (e valorizado) pela classe média, agora uma espécie de rastilho urbano serpenteando pelo entorno dos maciços. Na sua extensão sobejante, o RioSuburb, o que restou dos subúrbios, um mar de ilhotas entupidas de gente a se esparramar pela Zona Norte, avançando por refúgios e aterros da Baixada, até chegar à Serra do Mar, na fronteira com o Brasil.

Acima e no miolo dessas coisas, o Rio do Alto, uma cidade nova, planejada, com estruturas de fortaleza sob leves traços da melhor arquitetura, ocupando as cotas mais altas do território e da sociedade, em lugar de florestas e montanhas. É lá que se reúnem, pelo transporte aéreo ou por imagens virtuais, os abastados locais, conectados a outros enclaves do Brasil e do mundo. Reina ali, naturalmente, o mais profundo espírito democrático.

O Rio do Alto é praticamente uma ação entre amigos de fé. E de classe, de muita classe. De classe muito alta.

 

Capítulo 34                  O resto

Quanto aos pobres, estão em toda parte deste Rio tridimensional, e um bom nome para eles seria legião...

No Sub e no Suburb todos são pobres, salvo alguns comerciantes mais cuidados de seus bens. No Rio, pobre é o que há de mais horizontal, como que aplainando o sobe e desce dos morros, onde se contém.

E mesmo no Rio do Alto os pobres têm lugar. Ocupam belos recantos, pequenos e bem urbanizados guetos, e assumem mesmo posições da mais alta confiança, em casas de caseiro ou nos quartos da mordomia (no caso, no sentido de “conjunto de governantes ou administradores de residências”).

 

Capítulo 35                  Sem tempero

Claro, nem tudo é maré mansa na tripartida ex-cidade do Rio de Janeiro... Grassam algumas epidemias, ocorrem umas tragédias e alguma fome campeia, ainda mais quando o mar arrebenta.

Que importa?... A criatividade não falta e há muitas maneiras de conseguir o que comer.

As pessoas mesmo, em si, são um bom alimento.

Os do atoladouro, os que migraram para as cavernas do metrô, os que se esconderam nos precipícios de prédios abandonados, e outros em condições similares no RioSuburb, têm sempre à sua volta uma reserva vital de proteína, ali, entre eles mesmos, de corpo presente, questão de escolha apurada ou de força de vontade. Escolha e vontade, quando não das pessoas, da própria seleção natural.

Os do Rio do Alto, com suas potentes conexões, acessam fontes de alimentação mais sutis. Destaques para as algas, que chegam por via aérea, ou para os sofisticados tubérculos e especiarias plantados nos próprios quintais, gesto nobre de suas cozinheiras. Tudo muito saudável. O espírito ecológico mantém-se forte entre eles, tornou-se bom parceiro dos negócios.

 

Capítulo 36                  Destinos

Não sei mais aonde chegarei, mal sei como cheguei aqui...

No que foi meu espaço, o Rio de Janeiro, e muito além, os pobres não abandonam a tarefa de se espalhar e reproduzir, que é sua sina, e não a sua sorte. Os ricos continuam subindo, ainda que não se elevando, ainda obcecados por sua autoimposta fortuna.

Eu me pergunto onde isto vai terminar, mas a questão escapa a um defunto. Não estou mais aí, nem lá.

 

Capítulo 37                  Histórias

 

Pão de Açúcar acima - foto Guina Araújo Ramos, 2014
 Reitero que morri afogado, há pouco. Pelo menos, e é certo para mim, morreu o que realmente fez de mim o tal Rio de Janeiro de tanto sucesso, que fiz.

O que vem a partir daí é demais, tudo o que resiste além dessa conta, esta pobre megalópole que se espraia, com tão poucos ricos a se esconder o mais alto possível.

Passa a ser, para mim e para quem lhe aprouver, outra História. Vá lá que a História não termine enquanto o humano continuar desfazendo o que fez ou fazendo o que melhor seria evitar. As histórias, uma história em si, toda história e cada história, esta sim, e nem conto algo de novo, necessita terminar, tem mesmo que...

Sempre resta esperar que as misérias vividas não transmitam seu legado ao futuro dos nossos filhos. Ou, ao menos, que esta história chegue a um fim – e que me perdoem os cariocas – sem deixar filhos no mundo. 

 

Em matéria de Rio de Janeiro, Machado de Assis é unanimidade.

A escolha de um de seus textos, pela variedade e qualidade, parecia difícil e algumas tentativas foram feitas.

Logo, “Memórias póstumas de Brás Cubas”,

 por conta do tema dos contos do livro, se impôs.

Nestas memórias de quem já morreu, Machado de Assis surpreende até mesmo o leitor de agora, imagine o do final do século XIX... 

E não só pelo inesperado ponto de vista, o da história contada por um autor-personagem que já morreu, mas também pela desconstrução ou, melhor, pela “desformalização” da história, através do profundo senso de crítica do personagem, que, às vezes, parece ser (ou é) insensível às expectativas do leitor.

Seguindo esta estrutura, os capítulos do conto são curtos e o tom é necessariamente irônico, até mesmo autodepreciativo.

Afinal de contas, para isto, os supostos fatos colaboram muito...

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