Bandeirão, o Cabeção da Cabeça (conto)

 Bandeirão, o Cabeção da Cabeça

Guina Araújo Ramos         

       

A vida (e as duvidosas aventuras) de

Luiz Antão Bandeirão da Penha nas cidades amazônicas

em seus atribulados negócios nos últimos cantos do território,

contada com desequilíbrio, para delícia dos críticos e alguns leitores.

                                     

1ª. parte – No correr do século XXI

 Acervos

É tudo uma desorganização só, mas às vezes alguma coisa do que aparece nos arquivos tem algum sentido histórico. Ou, pelo menos, diverte o bastante... Pode não virar notícia de jornal, destes populares, mas faz sorrir um leitor. No meio do século XXI arquivos iam para a nuvem, que se desfez, enquanto sumiam dos servidores, mas sempre acontecia uma repentina recuperação.

Nessas, um pesquisador encontrou textos não revisados do Luiz citado no subtítulo, que se apegava, para se valorizar, ao inflado sobrenome Bandeirão. Escrevia sua história como se pudesse escandalizar o mundo, mas acabou prestando um serviço à História. Os dados, que me vieram, passo adiante. Guardados em computador alheio, como um repositório, com a pretensa intenção de, um dia, publicarem. Não custa fazê-lo, pode até dar um trocado.

Que fale o gajo.

Dando o melhor

            2098, uma noite de julho, em Belém do Pará. Eu estava com um cabo na mão (não da Força Pública, mas da segurança privada), na guarita de uma mansão, em um esporte que misturava esgrima e bilboquê, quando um estrupício nos assusta... De pau em riste, seu chefe (parecia mais seu marido...) queria satisfação. E justo quando eu ia gozando... O encanto desfeito, saí batido, mas sem apanhar...

No que um carro quase me atropela, conheci o dono da mansão. Desmaiei, convenientemente, em seus braços. Uma entrega que resultou em ascensão social fulminante, e o coroa, ainda por cima (por baixo também) era muito melhor de cama do que o cabo!

          O volume do negócio

            Tratava-se (muito bem, aliás,) de um comerciante abastado, oficioso contrabandista de nióbio (uma dessas substâncias estranhas que não conhecemos pessoalmente, mas que não podemos dispensar), uma espécie de celebridade de revista, ele.

No quarto, um gentleman, dava de tudo. Na sala, herdeiro mal escolado, bobo... Falava da fortuna enterrada na Cabeça do Cachorro. Mostrava documentos de sócio do negócio, que fotografei em alta, enquanto se aliviava de um cozido apimentado. E garantia: os americanos logo comprariam a sua parte, e pouco lhe faltava para consumi-la, por conta, em drinques e trinques, em Belém e no mundo.

Sendo também seu o cônsul deles, planos e brindes vazavam dos lençóis, e quantos!... Seria certa, e ele dizia como, a ativação da derradeira e mais preciosa mina de nióbio do Brasil, empacada na produção por impasses estatais e legais, a mina reserva de tantas outras já tão exauridas...

Em suma, caíam confissões, das grossas, no meu colo... Mais grossas que o demais, aliás...

         Fastio

Belém estava um porre... Nem misturando caxiri com cerveja de bacuri daria mais forte efeito. Às vezes, admito, o meu charme escapava e as mulheres me cercavam, a matrona de uma família de estirpe, a esposinha bem-criada de um jovem empresário (uma graça, ele). Elas querendo me dar, eu tratando de enfiar a cabeça em outro lugar. Também não queria mais nada com os dois, agora insípidos que nem jaleco de doutor. No fundo, a cabeça pesava. Digo, em cima.

Não me saía da cabeça a tal Cabeça do Cachorro, uma das poucas páginas vazias em meu portfólio amazônico.

       Das origens

Nasci no Rio, mas venho mesmo de Angola, quando ainda portuguesa. Vão até lá as minhas raízes, sugam solo africano, gosto de abraçar qualquer chão. Uma pitada de sangue imperial, porém, me deu estes ares superiores. Morou muitos anos na rua Larga, centro do Rio, a minha avó materna, Mrs. Dorothy Stone. Dela herdei o gosto “stone” e também o jeito “dorothy”.

Ainda tive mãe, em quem reconheci Jocasta, por tudo que aprendi. Meu pai é que me harmonizou. Um pirata nos bigodões e no olho mais vivo. Até os dedos, pela artrite dos tempos, assumiram justas formas de gancho. Pirata suave, cozinhando, possível, o mundo. E também bacalhau, divinamente. Muito, de temperos e humores, aprendi com ele.

        A caminho

Sociólogo e, como tal, formado na pressão, deixei para trás convulsões sociais e impasses políticos, que reviravam pedras portuguesas do largo de São Francisco. Deixei também o Rio. De RH numa multinacional mineradora, vi esvaziarem o sul do Pará de seu peso, em ferro, em ouro e outros.

Foi duro o meu pioneiro contato com a cor acetinada dos locais, nos processos a favor da empresa, na remoção de invasões ancestrais. Mais dura a segurança: notaram meu aconchego, no banheiro do escritório, com o liderança local...

Aproveito para uma crítica à qualidade das construções provisórias, nos canteiros de obras: muito devassadas, paredes finas demais, ouve-se nelas de tudo... Dei azar...

Pensando bem, a fase não era das boas. Pombos de praça viviam me acertando a cabeça (e nem reputo à área que ocupa), não adiantava mudar de lugar, voltavam a me acertar.

Só podia ser azar. Azar não: Super-Azar!...

Dei (também) de ombros: o bom do mundo é mais largo... 

Chutando de bico

Próximo passo, pela proximidade: a tentativa de assessorar os resistentes padres do Bico do Papagaio. Viviam ali seu embate centenário, com fazendeiros e lavradores se superpondo, uns impondo poderes, outros resistindo horrores.

E sempre os padres no meio. Fui chegando perto, com jeito, ciscando... É, não estavam mesmo brincando, criança ali não tinha lugar. E mais pesado pegava cada um dos lados da guerra, difícil optar... Medi o peso das armas...

Pedi arrego, não dava para encarar...


Belém na veia

A bordo de um caminhoneiro, em meados de 2089, resolvi conferir, ver o peso que Belém teria na minha vida...

Aquele antro do passado, tudo me impactou!... Mercados, igrejas, fortins, calçadas... Caí de quatro, não queria largar nunca mais. Zanzei pelas beiradas, pelas praças, pelos becos... Fiquei freguês das pensões.

Só que precisava de trabalho ou, de preferência, dinheiro... O jeito era sair atrás de problemas sociais, os bem remunerados. Se não, como sustentar os meus, os pessoais?...

Onde estavam? 

 

No ferro ou no papel?

Sempre fui chegado a um grande projeto, quanto maior o volume melhor a acolhida.... Dei uma revoada ao Norte, queria saber como estavam os enclaves por lá...

Ainda escorria a seiva metálica das selvas do Amapá, a funda hemorragia de ferro e manganês. Esta fonte alimentara a fome de fornos do outro lado do mundo. Agora, era um caso quase terminal, acabavam os estoques da terra, a serra do Navio afundara... Teriam que recriar o Estado, eu não podia ajudar...

Escorreguei para as beiradas do Beiradão, divisa do Pará, onde surgira, no final do século XX, a maior cidade longitudinal de que se tem notícia, e que ainda estava lá. Do varandão da birosca em palafita, assuntei: teria lugar para mim no Projeto Jari, do outro lado do rio? O que me disseram não valia um trago... Com a celulose perdendo papel, o arroz não vendendo bastante, a empresa rachara em pedaços. E a fábrica não saía do lugar...

         Represados no mato

Mereciam minha solidariedade, os índios do Pará.

Não os encontrei em Belo Monte, parece que não se entendem bem com hidrelétricas... E eu estava de passagem, nem pude visitar seus refúgios na Terra do Meio. Dizem que vivem bem por lá. O artesanato pode render muito, vi muitos casos.

         Buraco fundo

Interessava ir à serra do Cachimbo, garantiam que, lá, o buraco era verdadeiramente mais embaixo.

Empaquei na rigidez dos militares. Nenhum tour programado, entendi que não queriam visitas, perdi a viagem. Parece que armavam novos dispositivos, faziam testes, coisa muito explosiva mesmo, não sei quando...

Se não vi o núcleo do aparato, gostei da rigidez, de uns e de outros...

         Resquícios

A caminho dos extremos, a terra desdentada de Rondônia. Quase tudo que fora floresta, e depois cultivo, desmanchava-se. Às matas sucediam-se campos, e eu diria melhor: capoeiras, chão vazio, nada... Nas antigas terras dos Cinta-largas, uma paisagem lunar-tropical, poucos trechos de floresta emoldurando crateras boçais de garimpo. Ainda há diamantes ali, e também há quem os cate, na mão. As empresas e os índios há muito partiram.

Porto Velho, cada vez mais velha, à sombra das represas de Jirau e Santo Antônio. No rio Madeira, os clubes de pesca vencidos por dengue. Alguém ainda pesca, dá para comer boas moquecas na zona.

Numa conversa academicamente sacana, um magrelo do Rio me propõe um trabalho no Acre. Qualquer dinheiro, até o do Estado, tem cor. E, se paga a despesa do bar, tem gosto também. 

 


Luiz Antônio Bandeira, inspirador do conto, abraça a Natureza

(Sana, RJ – Março de 2021 – autor não identificado)

Santa fronteira!

Aceitei a pesquisa: conferir o trabalho da polícia, a fronteira parecia peneira... Topei por curiosidade, não apenas por estar paradão... Aquela mistura de bolivianos, peruanos, haitianos, bengalis, zambianos, portugueses, gregos, enfim, povos de todos os cantos (até brasileiros ainda viviam por lá), toda esta miscelânea humana me fascinava, queria provar de cada um!... Fora a chance de ir ao Santo Daime, uma fissura antiga.

As entrevistas davam no de sempre: os delegados se diziam eficientes, os prefeitos pediam verbas, o tráfico e o contrabando passavam e eu afundava naquela modorra... Até que enfim fui lá ao canto do Acre, para além de Cruzeiro do Sul, dez horas de canoa. Perfeito, o contato com os Daimistas... Logo vestia um pijamão branco, aprendia uns hinos monocórdios e, oba!, caía de boca no ayahuasca alheio!...

Teria vomitado a alma, se tivesse,e,  não fosse o refluxo, para algo teria que ser útil!... Tudo enjoa e o daime fora de hora ainda mais... Dei uma boa nota à polícia local e recolhi os bagulhos: hora de voltar à boa sombra das mangueiras, Belém!

 

Criações artísticas e cidadãs

Égua!... Tudo pode virar tédio, até Belém... Fora o carnaval e o Círio, os anos passavam parados... No Círio, valia a esfregação da corda, mas o carnaval se saía melhor nos jornais do que nas ruas. A chuva da tarde... Eu não podia aceitá-la como o momento mais emocionante do dia!...

Juntando grana e apoios, investi na noite empresarial: abri a Cantina do Bandeirão. Emagreci na conta, engordei na pança... Atraí o ódio dos vizinhos e a atenção da polícia. Sob protestos das meninas festivas, fechei o buraco do forno. Restou ao menos um consolo: aprendi que a gandaia não tinha fim.

Houve tempo, no molejo da borracha, que por Belém circulavam óperas e operetas, na maioria, francesas. Agora, baixava em nós o espírito caboclo. Rodei a baiana até criar uma associação, As Filhotas da Chiquitita do Bacanal. Não para o carnaval, para as bordas do Círio, recuperando o espírito profano do Arraial de Nazaré.

Nas apoteoses das Filhotas, no Bar do Parque, rolava todo ano, para simples degustação, um “Veado de Ouro”, um prêmio!... Também levei o meu, ainda imberbe: um luxo! 

 

Rota de fuga

Belém do Pará tanto crescera que até o nome completo, no padrão católico das cidades brasileiras, se expandira: Santa Maria de Belém do Grão-Pará e Outras Adjacências Muito Próximas (ou SMBGPEOAMP, na sigla), como ironizava um esportista libanês de minhas relações (do tipo neutras, no caso). Outro amigo, um carioca preguiçoso (outro neutro), simplificou: Sopa de Letrinhas...

Agora, grande metrópole, Belém me tirava o ar. Um sufoco, em terra e na baía, eu precisava de mato. E aquele tesouro todo na cabeça... Digo, na Cabeça do Cachorro. Os americanos, pelo que vi, de olho nele. E os interesses dos políticos locais, todos queriam um pedaço. Hum, bem que eu podia ir dar uma olhada...  

Belém, Belém, Belém... Um sino tocando a valsa de despedida, como se eu estivesse sempre partindo... Estava. Parti. 

 

Perdão, críticos!

Seguir uma estrutura literária dá nisso: sempre que o nosso herói mente é preciso que se faça correções... Não houve nada de heroico nesta despedida. Tratou-se de uma escapada necessária. Além de ficar devendo na praça, aporrinhou-se com um policial de maus bofes, que o encontrou trocando bolas com um zagueiro do Paissandu, numa despedida de solteiro, de ambos. Como deu tudo em bolero, deixou os dois pra lá...

Melhor cair no mundo do que na cova.

 

2ª. parte – No vale tudo do Amazonas   

 

No mato e nos rios

Abrevio os fatos do caminho. Muitos dramas correntes na Amazônia, e o espaço aqui é curto... Enquanto viajava, um bafo na proa, me revia...

Digamos que eu estive em tudo quanto é imbróglio econômico ou político do Inferno Verde...

Ou do Purgatório Cinza, diz-se hoje. 

 

Sem reservas

Até os povos intocados se esfumaçaram. Os últimos perderam vidas (e terras) no vale do Javari, fronteira do Peru, por volta de 2080, de gripe ou de grana. Mas não se pode esquecer que a Amazônia estivera, um dia, cheia de índios. Ou indígenas, para ser careta e antigo... As melhores provas eram os rapazes, no mato ou na cama. E davam ótimos guerrilheiros, quando a população normal reagia. Para eles, melhor do que morrer na prisão urbana ou nos trabalhos forçados do agronegócio ou da mineração.

Também, reconheçamos, as reservas, as indígenas, caíram completamente em desuso. Tem gente que está até hoje discutindo, mas a Lei de Reliberação das Reservas Indígenas, de 2050, algo assemelhada à Lei da Terra do século XIX, ela realmente resolveu a questão. Liberou geral, ou não estamos no liberalismo tardio?... Cada um que se interessava foi lá, deu seu preço e comprou dos índios a reserva que bem quis.

Os Ianomâmis de Roraima é que tiveram outra sorte. Ganharam a sua própria fronteira, entre o Brasil e a Venezuela, deixaram os funcionários do Consórcio de ONGs administrarem (sob proteção russo-sino-europeia, registre-se) e embarafustaram-se lá para os fundilhos do território. Nunca se interessaram mesmo pelas grandes reservas de urânio ou nióbio, os Ongueiros internacionais cuidavam melhor disso. Não é à toa que os americanos corriam atrás do prejuízo, agora, batendo para a Cabeça. 

 

O lago negro da força

Nessas horas, uma carona aérea cai bem, desde que o avião não caia...

E nada como um aventureiro a mais na vida... Um garoto charmoso, em viagem de negócios: curtimos umas em Parintins. Não queria meter o nariz em seus assuntos, mas reconheço, caprichoso, que sua amostra grátis, nada malhada, foi da maior qualidade, garantido. Ia a Manaus, eu também. Ocioso ele, curioso eu, ampliamos o roteiro para um sobrevoo pelo Urucu, o lago de óleo na floresta. Um vazamento campeão, anos a fio, recordista mundial. Funcionou tudo como manda o figurino: o governo privatizou, a empresa economizou, o petróleo extravasou. Passamos rápido e alto. Fedia.

De outro lado, lá na Cabeça, a mina de nióbio, a que nos esperava, continuava no mesmo estado do Estado: parada.

Ao menos, não vazava. 

 

                        3ª. parte – Manaus, março-junho de 2099 

 

Conchavos

Como Lucca se articulava bem, nossa!...

E este nome?... Parecia uma sigla, adorei!... Só clientes da alta. Todos ambiciosos, é claro. O nióbio da Cabeça, entre eles, era figurinha repetida. E carimbada, abriam cada olho... Modestamente, soltei as minhas histórias: o contrabandista, o cônsul, a foto do contrato...

Tudo, eu juro, para não largar o osso do Lucca, digo, o colosso do Lucca, uma graça de conspirador!

Aí, me convidam para uma reunião. Pelos nomes e cargos, das sérias. Fui, na maior inocência. Mostraram o maior interesse: “precisamos de um sociólogo!”... Queriam me ver no comando da missão, que eu assumisse os negócios do nióbio, um absurdo!...

Precisei de um porre para topar.

Topei, quem controla uma cabeça?...

Na manhã seguinte, na praça da Saudade, puxando um, do bom, enquanto admirava a espada da estátua do Tenreiro Aranha em pé à minha frente, já bolava estratégias. Adoro!

 

Lotação

Para começar, faltava uma equipe, uma tropa possível.

Pois, não é que, em mais uma coincidência altamente literária, me aparece uma trupe conhecida, umas figuras que bruxuleavam em torno da Cantina do Cabeção, na estreitura da rua dos 48, no velho centro de Belém?...

Vinham a Manaus para um festival de artistas de rua (ou coisa que o valha, se a algo que o valha), um desses eventos bancados por renúncia fiscal e alguns subornos normais, práticas antigas. Agora desocupados, todos adoraram a ideia de cair de cabeça na Cabeça. E, para enfeitar a tropa, ainda apareceu, à noite, em um balé desengonçado no teatro Amazonas, um par de jarras local... Éramos exatamente a lotação do aviãozinho do Lucca, oito pessoas. Nós dois, eu e ele, e os demais. Com diferentes entusiasmos pela causa.

Passo a régua e faço o rol... Zuísso, um negão de primeiro mundo, sempre louro por pura estética, no que era bom... Líbdina, talvez a mais devassada das mais desbocadas devassas, gente finíssima... Qualé, o suprassumo do baixinho invocado, que me dava, ui!, cada calafrio... Verón, outra baixinha invocada, especialista em transes e trânsitos, que descolava qualquer parada... E, saindo dos bastidores do balé, os gêmeos univitelinos Boné e Casilha (e não me perguntem de onde vêm estes nomes!...), figuras magérrimas, sempre acelerados, elegantíssimos em suas camisas sociais brancas, óculos bambos, calças pretas e sapatos de bico fino.

 

     Equipe

Mais uma vez, uma correção necessária... 

Esta história de que a participação do grupo derivou de um encontro casual em uma praça abandonada de Manaus ou no teatro Amazonas é pura balela.

Como já rolava alguma grana de ressabiados investidores, contrataram uns funcionários burocráticos, em disponibilidade na Prefeitura, para dar um lastro à cruzada do Bandeirão.

O resto é fantasia, do próprio.

Ele adora uma fantasia, tinha que ver nas Filhotas...

 

            4ª. parte – Cabeça do Cachorro, julho-dezembro de 2099

 

No ar, o gozo

Viagem sempre me excita. Estar ao lado de um piloto tão bem equipado, ai!, levantava ainda mais minha moral...

A dele também, pelo que pude perceber (com o devido tato, dada a altitude) no manche erguido ao meu lado.

No ar, sem o piloto automático e com todos os assentos ocupados, um perigo: fiquei firme, na mão.

 

Em terra, a coisa

São Gabriel da Cachoeira não surpreendeu: um arruado cercado de calor por todos os lados, um rio passando à frente.

Na cor da população, escondiam-se, parece, todos os índios perseguidos do país. Os oficiais do exército e outros comandantes mandaram geral no pedaço até a política federal abandonar a região. Alguns abnegados tentavam manter as coisas no lugar, quando não a grana no bolso.

A mina andava esquecida.

Campanha sem riscos, avaliei.

             No fogo, a perda

Perigoso é o fogo amigo... Lucca ia partir, e ainda levava o aviãozinho. Um negócio inadiável em Letícia, na tríplice fronteira amazônica, imperdível carregamento de pó, com cliente certo em algum lugar dos Estados Unidos. A missão da mina sofria a primeira baixa, de alto nível, o meu querido Gerente de Transportes.

Carente, busquei consolo na variedade multiétnica da fauna local. Um antigo descendente de quilombolas, pai de santo, colocou sua pemba sagrada à minha disposição.

Solidário com o povo, tratei de conferir se um ex-cacique das minhas relações continuava com seu tacape em boas condições de uso. O suficiente, nas circunstâncias.

Na água, o ministério

Concentração máxima, operação lançada!...

A dupla Boné e Casilha checava as condições... Ninguém conseguia conter seu ímpeto: praticamente, pesquisavam tudo sobre tudo. Na véspera da ocupação, na insônia, apesar das cachaças que tomei, sonhei que formava uma corte. Meus gerentes seriam os ministros de um governo monarquista, deleguei poderes...

Boné, que aprendera sozinho várias línguas (o russo, numa gramática comprada em um sebo da rua da Alfândega), o Ministro das Relações Exteriores... Seu irmão gêmeo, Casilha, que inventou uma linguagem secreta (espécie de esperanto que funcionava), muito útil nas comunicações secretas ou particulares, Ministro da Ciência e Tecnologia... Para a Defesa, ninguém melhor que Qualé, pela postura de galo machão, embora eu ainda desconfie que tinha flores no lugar do coração... Nas Comunicações, Líbdina, e que ninguém se metesse, que ela logo dizia muitas e boas, exceto, se viessem com jeito, na cama... Para Cultura e Educação, naturalmente, um artista de quatro costados e de muitas frentes, o maestro Zuísso. E a esperta Verón, que já arquiteturara obras e rotas de uma cidade sem esquinas e sem volta, para Ministra da Infraestrutura.

Ação!

Chegamos à mina de madrugada, como manda o Manual de Invasão de Propriedades Alheias. Fomos recebidos por um vigia. Diante dos fartos documentos e algumas ameaças, abriu os portões. Desapropriamos as mesas mais bem decoradas e as cadeiras mais confortáveis. Chegam os poucos funcionários, encontraram a nova chefia e seus gerentes em posição de trabalho. Um deles, acostumado à mesa em frente à janela, com vista para o rio Negro, protestou. Nosso Gerente da Segurança, Qualé, tratou logo de enquadrar. Durou alguns minutos o bate-boca, e alguns empurrões. Superadas as questões de ordem, tudo resolvido: a mesa e a mina eram nossas.

O cafezinho fumegava na maquineta.

Expediente

A empresa necessitava de um choque de ordem empresarial. Assumido o controle dos escritórios, recebi um imediato apoio dos estupefatos funcionários: bastou garantir que duplicaria os míseros salários, quando desse lucro. Tendo sido feitos altos estudos prévios sobre livros escolares e mapas antigos, disponíveis e copiados da Internet, imediatamente emiti ordens: reabrir a mina, produzir tantas toneladas etc.

Logo no primeiro memorando, apus, sob a assinatura, a insígnia do Cabeção (um carimbo escalavrado por Zuísso, com o contorno do mapa da região associado a meu perfil), indicando ao mundo quem estava à frente das operações. Com este breve gesto assumi, modestamente, o título (e daí, que todos se obrigassem a me chamar...) de Bandeirão, o Cabeção da Cabeça do Cachorro.

Cada um tem sua forma de entrar para a História.

Não discutirei este ponto. 

Cotidiano

Sabe-se que as regras de administração de empresas são eficientíssimas, muito objetivas etc. e tal, mas devo dizer que percebi, na prática, que dá um certo trabalho implementá-las... Tomei as devidas providências para fazer funcionar a mina, mas notei que seria um tanto difícil, digamos, manter a disciplina do muito mole corpo técnico...

Também não considerei, reconheço, as implicações diplomáticas. As comunicações são rápidas, em meia hora o mundo inteiro ficou sabendo. Consta que o governo brasileiro resolveu tomar uma atitude. Devia estar tudo pronto na gaveta, porque de imediato emitiram um decreto considerando de utilidade pública a região, abrindo licitação para a entrega a um concessionário. Ainda no mesmo dia, uma empresa americana, até então desconhecida, a American Mines Syndicates, venceu a concorrência e já mandava tropas para assumir o controle dos seus novos negócios.

A informação de que os novos dirigentes se aproximavam, gente que eu chamaria de mercenários, e se dispunham a assumir, na marra ou não, as atividades da empresa, chegou na manhã seguinte e deve ter sido isso que deixou a rapaziada um tanto tensa, tanto que rolou uma espécie de barata voa com os documentos internos e com as fotos familiares que se espalhavam pelas mesas.

Recolhido à minha sala envidraçada, fazendo aviõezinhos de memorandos em lembrança de Lucca, pensava em alternativas funcionais que pudessem bloquear as ameaças.

Promoções, talvez.

Aumentos já prometera, na véspera.

Homenagem

Naquele dia e meio de controle total das operações da mina, aproveitei para reconhecer e prestar minha particular homenagem à sublime arte da mineração. Imaginem o trabalho que deu, a tantas pessoas e empresas, durante anos, a extração, do solo brasileiro, de infinitas quantidades de minérios... Do ouro do século XVII, em Minas Gerais, passando, para ficar só na região Norte, pelo manganês da Serra do Navio do Amapá, ouro de Serra Pelada, bauxita de Paraopebas e ferro de Carajás, estes no Pará, e os diamantes e a cassiterita de Rondônia, fora as misteriosas terras raras da Amazônia de exportação ainda mais misteriosa...

E pensar que tudo isto não passou de uma forma direta de criar dinheiro a partir da terra bruta... E não me importa quem tenha levado a grana e para qual paraíso fiscal: não fui eu!...

Restou-me, dos pensamentos ociosos daquela tarde no comando da mina, certo orgulho por ter participado, ainda que de forma mínima, deste incrível processo de defloração (ai!) do solo pátrio, assim também fertilizado, mesmo que a criança tenha se perdido pelo mundo.

Não sei se ainda sobra no solo algum rebotalho ou escória a ser esgaravatado, mas, se sobrou, pode ter certeza: alguém vai aparecer e, tchan!, retirar o seu!

 

Rendição

A prática da segurança privada chegou ao estado da arte, aos píncaros, aos cumes (ui!), sei agora eu e por experiência própria. A quantidade de homens muito bem aparelhados (e elegantes, naqueles terninhos pretos), que, de repente, de supetão, adentraram ao meu escritório, justo quando desembalava uma cerâmica comprada na feira, foi de tirar o fôlego e de quebrar a peça, que assustou-se e caiu ao chão, mais um prejuízo no balanço da empresa... Devo confessar que me abandonei, com certo prazer, em seus braços (dos seguranças, não da peça) e não me fez nada mal o arrocho que recebi, estão absolvidos do susto.

Sinceramente, faria tudo de novo, desde que mantivessem, ao menos, esta recompensa.

             Rescaldos

Dos funcionários e aventureiros, a maioria se ajeitou por ali. Parece que se acumpliciaram, em São Gabriel da Cachoeira, com um grupo plástico-teatral. A prefeitura dará um subsídio e terão colocação garantida na sociedade local. Única baixa a lamentar, o querido baixinho Qualé, que, levando demais a sério a função de Gerente de Segurança e o bico de segurança particular de seu chefe Cabeção, entrou em interminável discussão com o futuro substituto, justo quando inspecionava o guindaste mais alto da mina, o que resultou em lamentável queda no rio Negro, e sabe-se lá onde foi parar, os peixes que o digam...

Não sei se os peixes dirão... O certo é que meu herói não será encontrado na pança de uns daqueles enormes tucunarés de antigamente, muito menos enredado nos braços de um boto colorido, quiçá cor de rosa, o que talvez até gostasse. E simplesmente porque não há mais exemplares destas espécies nos rios da região. É claro que as piranhas estarão à disposição, sempre praticando seu esporte preferido, a dilaceração e deglutição de corpos adentrados às águas da Amazônia, coitadinho do Qualé...

Comemoremos!

Tudo isto aconteceu nos derradeiros dias de 2099.

Chegávamos, então, ao simbólico 31 de dezembro. Anoitecia e o novo ano, e logo um novo século, se aproximava às carreiras. Restavam-me uns trocados. Adentrei a um puteiro, mandei descer todas as biritas que pudesse pagar e passei um dos réveillons mais encharcados de que me lembro.

Até porque choveu de encharcar a alma e no final o dono da birosca me enfiou o pé, apenas, na bunda.

Literalmente, chafurdei na lama amazônica.

                        Adeus

O que realmente não me satisfez de todo foi retornar a Manaus na décima terceira classe de um barco chumbrega, que desceu sorumbático as negras águas do rio Negro, esbarrando em ilhas, ilhotas e olhotas. Da capital, descolando algum, tratei de me escafeder, recolhendo-me a um retiro espiritual aos pés da igreja da Penha, no Rio de Janeiro.

Lá, redigi estas memórias, antes de, desencantado, retirar-me para ainda mais longe da, bem ou mal, dita civilização brasileira.

             Arremate

Na condição inegável de autor, outro necessário comentário.

Nosso herói viveu ainda uns anos no conjunto residencial do IAPI da Penha, no Rio de Janeiro, matando saudades dos velhos tempos de infância, dos antigos troca-trocas de figurinhas e outros, de então. Convidado, optou por um casamento de alta conveniência afetiva, com uma velha e acadêmica amiga dos bancos escolares, hoje próspera fazendeira aos pés de belas cachoeiras virtuais da arrasada Serra do Mar.

Viveram, os dois e convidados eventuais, por longo tempo, entre livros, discos, comidas e bebidas, até se perderem na bruma do tempo, sabe-se lá a partir de que posição erótico-existencial ou de que prática transcendente mais ousada.

Depois, são só lembranças, e esta memória.

Metaliteratura

Quem sabe o autor do livro que me serve de referência, estrutural e estilística, virá a se incomodar, um dia, e até mesmo se aborrecer, se indignar, com este meu gesto primário, manjadíssimo, de desenvolver cópia tão descarada de suas brilhantes ideias, e venha a me processar, como se eu fosse um mero biógrafo?...

Ora, seria uma honra!... E, quiçá, uma oportunidade, com a fama daí advinda, de ganhar algum... E mais, de alcançar sucesso nas páginas culturais (e talvez nas policiais...) dos meios de comunicação impressos e visuais, muito especialmente em programas de crítica literária, monótonos ou não.

Uma glória!

Talvez a verdadeira glória literária.

 

Este conto é fundamentalmente baseado no livro “Galvez, imperador do Acre”, de Márcio de Souza, que também pode ser visto como um retrato do Brasil...

O espírito de aventura, característico do personagem principal, as suas vivências em Belém e os traços básicos dos atores secundários encontram eco em interessantíssimas figuras conhecidos pelo autor. Parte do texto, portanto, é baseado em fatos reais, alguns deles praticamente inimagináveis.

Algumas referências de ambientação de Belém vêm dos romances históricos Anjos da Escuridão” e “Cidades”, do paraense Amauri Braga Dantas. O mesmo se dá quanto ao romance “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum, na sua relação com Manaus.

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